A masculinidade e o uso de medicamentos
Encontrar lixo no chão não é algo muito incomum, mas encontrar “esse lixo” no chão tem um significado próprio. E foi justamente com essa cena que me deparei ao estacionar o carro em frente a uma farmácia no centro da cidade. Igualmente, quem trabalha em farmácias (ou perto de uma) sabe que essa imagem é mais comum que se imagina.
A masculinidade em xeque
A Sildenafila é a substância ativa do Viagra®, medicamento de referência mais famoso para o controle da disfunção erétil (“impotência sexual”). Atualmente, ele não é a única opção, ao lado do Cialis® (tadalafila) e Levitra® (vardenafila), para mencionar alguns. Não é de se estranhar que, em uma sociedade machista, seja quase natural o comportamento de descarte instantâneo de qualquer tipo de caixa, rótulo ou bula que possam alardear o uso de um medicamento voltado à “insuficiência” sexual masculina. Nesse sentido, mesmo que a disfunção erétil seja uma questão relativamente comum, momentânea ou cronicamente associada a outras condições de saúde, assumir esse problema pode representar um golpe na virilidade de alguns (muitos) homens.
A patente do Viagra® no Brasil foi vigente até 2010, o que garantiu o monopólio da comercialização de medicamentos contendo Sildenafila pela Pfizer. Portanto, o acesso ao medicamento era restrito para poucos, que realmente precisavam utilizar (por indicação médica) e podiam arcar com o custo alto. Por outro lado, após a patente caducar, vários medicamentos contendo esse fármaco surgiram, incluindo genéricos de custo menor. Consequentemente, houve aumento no acesso pela população e mudança no perfil de consumo.
Estímulo à ereção como estilo de vida
Como resultado desse acesso facilitado, nem todos que usam esses medicamentos atualmente tem indicação formal para isso e o fazem via automedicação. Nesse sentido, o padrão de uso de “substância de performance” também se tornou um símbolo de como a virilidade associada à ereção e relações sexuais é um troféu da masculinidade.
Muitos homens compram e utilizam esses fármacos para “impressionar” parceiros(as), para conseguir fotos “instagramáveis” na praia (!) e uma variedade de outras situações. Contudo, o uso do medicamento é algo buscado intencionalmente nesses casos, e não imposto (vergonhosamente, para a maioria dos usuários) por uma condição médica. Obviamente, mesmo no uso como droga de performance, fica claro que a intenção não é atribuir os efeitos ao medicamento, mas à virilidade intrínseca do usuário. Portanto, a lógica de não alardear o uso permanece em pé (sem trocadilhos): não achem estranho encontrar evidências de descarte imediato de “provas” de compra de qualquer produto que tenha o intuito de reparar “falhas” de masculinidade. E isso pode acontecer até mesmo antes de deixar a farmácia.
Uma solução curiosa
Enfim, o caso da sildenafila é um exemplo clássico de fármaco com padrão de consumo influenciado pelo contexto do machismo. Curiosamente, o seu desenrolar é tão interessante quanto. Enquanto uma revolução cultural não muda drasticamente o cenário da masculinidade, algumas indústrias farmacêuticas voltaram o olhar para as embalagens: A Bayer apostou em reformular da apresentação do Levitra®, com embalagem menor (que cabe no bolso ou em algumas carteiras), cores discretas e poucas inscrições que identifiquem o “conteúdo”. Para masculinidades mais frágeis, a mudança visual é um refresco. Para os menos abastados, se livrar imediatamente da caixa ainda é uma solução economicamente mais viável.