Tatuagens e anestésicos tópicos: qual é o risco?

Postado por: Lucas Gazarini

As pessoas podem ter níveis diferentes de sensibilidade dolorosa. Em procedimentos superficiais (estéticos ou não), isso não é diferente. Para fazer tatuagens sem dor, algumas pessoas recorrem a várias “ferramentas”: desde bebidas alcoólicas até medicamentos de uso oral. A estratégia mais comum são os medicamentos de uso tópico (externo), como cremes ou sprays contendo anestésicos locais, talvez pela facilidade. E era justamente aí onde eu queria chegar.

O caso aconteceu em 2021, mas a investigação só foi divulgada neste ano: um homem morreu enquanto era tatuado, após usar um spray com anestésico local. Quando eu soube dessa notícia, não dei muito crédito. Anestésicos de aplicação tópica são bastante usados em procedimentos estéticos (depilação a laser, microagulhamento, tatuagens, etc.), sem muitos problemas. Eu, inclusive, já usei anestésicos tópicos para fazer tatuagem, então questionei o caso até pelo meu viés pessoal.

Pouco tempo depois, foi divulgado que o laudo pericial indicava a presença sistêmica do anestésico, sugerindo a intoxicação como provável causa de morte. O tatuador, que usou o spray no cliente, foi indiciado por homicídio culposo. Busquei ler um pouco mais sobre o caso pra entender como o uso do anestésico podia estar por trás da morte nesse caso, que é atípico.

 

Entendendo os anestésicos

Os anestésicos locais inibem a sensação de dor ao impedirem a abertura de canais de sódio dependentes de voltagem, que são necessários para a transmissão de impulsos nervosos que levam o estímulo doloroso da periferia (pele) ao cérebro. Por interromper essa comunicação, a dor não é “percebida”, mesmo que o estímulo doloroso exista. Simplificando, é uma forma de tapear as vias da dor.

A lidocaína é o fármaco mais frequente em preparações anestésicas tópicas, com concentrações que variam entre 4% a 10%. A prilocaína também comum em procedimentos tópicos, muitas vezes associada à lidocaína em concentrações individuais de 2,5% (EMLA®, de referência). Embora o mecanismo de ação das substâncias seja o mesmo, elas variam quanto a aspectos farmacocinéticos: capacidade de atravessar a pele íntegra, tempo necessário até início da ação anestésica e duração desse efeito. Por isso, o uso da lidocaína isolada ou combinada à prilocaína não é uma mera questão de “o que é melhor”, mas “o que é mais adequado em determinada situação” (e em quais situações elas foram testadas, claro).

 

Os anestésicos locais são seguros?

Ao contrário do que alguns profissionais sugerem, nem todo medicamento tópico tem absorção sistêmica. Em doses adequadas e com uso preconizado, a absorção pode ser irrisória, restrita às camadas superficiais da epiderme e derme, e não representa riscos. Geralmente, as bulas de medicamentos contendo esses fármacos são claras em definir “faixas seguras de dose“. Por exemplo, a aplicação de 60 g de creme (lidocaína a 4% ou lidocaína/prilocaína 2,5%/2,5%) em uma área de 400 cm2 de pele íntegra ao longo de 3 h resulta em concentrações plasmáticas de 30 a 40 vezes menores que as necessárias para gerar efeito tóxico.

O uso também deve ser exclusivo em pele intacta ou em torno de ferimentos, nunca exatamente sobre áreas lesadas ou mucosas, para evitar a absorção sistêmica. É comum que a aplicação aconteça antes do procedimento, mantendo a região em contato com o fármaco por 30 a 60 minutos. Antes de iniciar o procedimento, o medicamento é removido, o que reduz a absorção em casos mais “invasivos” (como tatuagens, que envolvem a perfuração da pele). É importante frisar que esse procedimento é descrito nas bulas para situações específicas – punção venosa, enxertos de pele, debridação de úlceras, etc. – que não incluem procedimentos estéticos. A avaliação do uso desses medicamentos em estética é mais raro, não havendo recomendação formal.

 

O risco dos anestésicos locais na circulação

O nome é claro: anestésico local. Seja por aplicação superficial ou injetável (subcutânea), o propósito é anestesiar uma pequena região. Quando quantidades grandes desses agentes alcançam a corrente sanguínea, a situação pode se tornar mais complexa. Canais de sódio que são bloqueados pelos anestésicos em terminações nervosas também estão presentes em outros tecidos e órgãos: no coração, esses alvos regulam a frequência cardíaca; no cérebro, os canais são imprescindíveis para o funcionamento normal dos neurônios. Por isso, intoxicações sérias com anestésicos locais podem culminar em arritmias, hipotensão e falência cardíaca, com alteração da atividade nervosa e epilepsias. Essas consequências podem levar à morte, exatamente como no caso noticiado.

Esse tipo de intoxicação é noticiado eventualmente, quando anestésicos locais são administrados por via endovenosa (seja por erro de medicamento ou por acesso venoso inadvertido). Como o uso do anestésico foi tópico no caso da tatuagem, uma série de fatores podem estar por trás do efeito tóxico observado. A minha ideia aqui é levantar algumas hipóteses, com base em aspectos farmacológicos que já antecipei no texto.

 

O que poderia estar por trás da morte associada ao uso tópico de lidocaína

Alguns pontos chamam a atenção na cobertura jornalística, mesmo que nem todos os detalhes tenham sido divulgados. Segundo envolvidos, o processo de tatuagem levou o dia todo, começando pela manhã e terminando a noite, quando aconteceu a morte do homem. Há relatos de que a morte aconteceu “tão logo o medicamento foi aplicado”, sugerindo que ele tenha sido aplicado ao final do processo. Não há nenhuma confirmação, contudo, de que o fármaco só tenha sido administrado ao fim do processo. Levando tudo isso em conta:

  • Se a lidocaína foi administrada várias vezes ao longo do processo, a absorção da substância – mesmo que mínima – pode ter acontecido de forma cumulativa ao longo do dia, resultando em concentrações plasmáticas cada vez maiores e intoxicação sistêmica;
  • A aplicação do anestésico após a realização da tatuagem é pouco racional, já que o processo de lesão em uma grande extensão do ombro/braço poderia aumentar significativamente a absorção da lidocaína, justificando a intoxicação mesmo que o medicamento tenha sido aplicado exclusivamente nesse momento. Para alívio de dor após um procedimento, anti-inflamatórios poderiam ser utilizados com menos riscos;
  • A preparação de lidocaína utilizada tinha concentração de 20%, muito maior que as usadas normalmente. O aumento da concentração pode facilitar a absorção do fármaco mesmo em pele íntegra, por aumento no gradiente de concentração (diferença entre a concentração do fármaco no meio externo e tecidos do corpo). Como houve a aplicação na pele lesada, o homem foi exposto a quantidades muito maiores de lidocaína comparado a preparações menos concentradas;
  • Fatores individuais não podem ser descartados, como hipersensibilidade à lidocaína ou alterações genéticas, renais e hepáticas que possam aumentar a absorção do fármaco ou reduzir a sua taxa de eliminação, potencializando os efeitos tóxicos. O laudo pericial apontou, por exemplo, congestão pulmonar a anormalidades no volume cardíaco, que não necessariamente se relacionam com a intoxicação diretamente.

 

O que o caso escancara

É claro que o ocorrido gerou um estado de alerta sobre o uso desses agentes. Uma tendência automática é pintar a substância como vilã, o que claramente não é o caso. Outra tendência é de usar o caso para reforçar que apenas alguns profissionais poderiam prescrever/administrar o medicamento, mesmo que acidentes também sejam associados a “profissionais habilitados”.

Os anestésicos tópicos são medicamentos de venda livre. E nós não podemos ignorar que as pessoas se automedicam com frequência (inclusive com medicamentos “mais arriscados” que os anestésicos locais). Esclarecer a população sobre o uso racional de medicamentos parece ser a estratégia mais lógica. Embora trágico, o ocorrido aumenta a visibilidade dese assunto. Mesmo assim, você pode estar ciente de que essa certamente não foi a última notícia que você vai ver sobre intoxicação com anestésicos locais, seja por imprudência ou imperícia.

 


Esse é um artigo de opinião: o propósito não é fazer acusações ou participar das investigações indiretamente,  mas simplesmente levantar aspectos técnicos sobre uso de anestésicos locais, com foco em farmacologia.

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