THC pode ter ação interessante no controle da dor na fibromialgia
Como 15 de Novembro será comemorado o dia mundial da Cannabis medicinal, próximo do dia Nacional da maconha medicinal (27), as postagens ao longo desse mês serão voltadas a essa temática.
Um estudo clínico publicado há um ano indicou o efeito analgésico de extratos oleosos de maconha (Cannabis spp.) com concentrações altas de Δ9-Tetrahidrocanabinol (THC) no controle de sintomas associados à fibromialgia e melhora na qualidade de vida. A pesquisa foi realizada no Brasil, incluindo mulheres de Floriaópolis (SC), junto ao Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Os estudo completo foi publicado na revista Pain Medicine, especializada em dor.
A doença e o manejo medicamentoso atual
A fibromialgia é considerada uma síndrome de dores crônicas, caracterizada especialmente pelas dores musculares e articulares (muscoloesqueléticas). Além da dor, o paciente apresenta fadiga, alterações no humor e no padrão de sono frequentemente. Por isso, o impacto na qualidade de vida é enorme, se estendendo a esferas físicas e psicológicas.
Segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia, a incidência da doença no país é próxima de 3%, atingindo preferencialmente mulheres entre 30 e 55 anos. As causas da fibromialgia são complexas e geralmente associadas à interação entre fatores genéticos e ambientais.
Atualmente, as estratégias de tratamento para fibromialgia buscam o alívio sintomático, especialmente com o uso de analgésicos e anti-inflamatórios. Antidepressivos e anticonvulsivantes podem auxiliar no alívio das dores crônicas, além de serem usados para o tratamento de comorbidades psiquiátricas (ansiedade e depressão, principalmente). No entanto, esses medicamentos tem ação sintomática (paliativa, sem perspectiva de cura), são pouco eficientes na fibromialgia e muitas vezes acompanham perfil indesejado vasto, que dificulta a adesão do paciente ao tratamento.
Canabinoides como alternativa para a fibromialgia
O uso de preparações à base de maconha (Cannabis spp.) e produtos derivados para o alívio da dor é bastante tradicional. Atualmente, estudos clínicos apontam a eficácia de vários canabinoides no manejo da dor em adultos. Entre os canabinoides produzidos pela maconha, destaca-se o Δ9-Tetrahidrocanabinol (THC), canabinoide majoritário em algumas variedades da planta normalmente associada ao uso adulto (“recreativo”): seus efeitos incluem a ação psicoativa, causando euforia e alterações na coordenação motora.
O THC é um canabinoide particularmente controverso: muitos consideram o THC “um grande vilão” entre os canabinoides, por ser frequentemente associado ao risco de dependência, ansiedade e crises psicóticas (dependendo de vários fatores, como padrão de consumo, perfil genético do paciente e concentrações utilizadas). Ainda, outros conhecimentos “populares” (e não necessariamente corretos) associam o THC à demência, porta de entrada para outras drogas e outros aspectos diretamente associados ao estigma social de uso de maconha como droga de abuso. Contudo, vários efeitos terapêuticos importantes foram relatados com o uso dessa substância, incluindo controle da dor, da insônia, espasmos musculares e anorexia, tornando o THC uma alternativa interessante no manejo de sintomas como os da fibromialgia, o que justifica o propósito da pesquisa.
Como o estudo foi conduzido
O estudo foi randomizado, duplo-cego e controlado por placebo, que é o desenho experimental com maior validade para avaliação de eficácia. Foram recrutadas 17 participantes com diagnóstico de fibromialgia com sintomas moderados a severos e sem riscos psiquiátricos (especialmente esquizofrenia). Todas as participantes foram mulheres, com idade média de 51,9 anos e uso anterior de opioides, antidepressivos e benzodiazepínicos entre os medicamentos associados ao alívio dos sintomas.
Como tratamento avaliado, foi utilizada uma preparação oleosa (em azeite de oliva) de Cannabis, variedade White Widow, que tem concentrações de THC até 48 vezes maiores que as dos demais canabinoides (incluindo o canabidiol, CBD). Cada gota do óleo tinha aproximadamente 1,2 mg de THC e 0,02 mg de CBD. Após o ajuste de dose individual, cada paciente usou entre 3 a 4 gotas sublinguais por dia. Metade das participantes receberam o extrato de Cannabis, enquanto as demais (grupo controle, placebo) receberam um frasco com azeite de oliva puro.
Efeito do óleo rico em THC em pacientes com fibromialgia
As participantes foram avaliadas a cada 10 dias, ao longo de 2 meses, usando uma escala que mede o impacto da doença na rotina das pacientes (Fibromyalgia Impact Questionnaire, FIQ). Ao final to teste, participantes que receberam o extrato rico em THC apresentaram melhora gradual ao longo das 5 avaliações, quando comparadas ao grupo controle. Foi observada:
- Melhora geral nos parâmetros avaliados pelo questionário de impacto da fibromialgia (FIQ);
- Redução significativa na dor e fadiga;
- Impactos positivos no trabalho, com menos dias perdidos;
- Maior sensação de bem-estar geral (qualidade de vida).
O tratamento foi bem tolerado e os efeitos mais comumente relatados no grupo que usou THC foram sonolência, tontura, boca seca, melhora no humor e libido. obviamente, os dois últimos não se enquadram como efeitos indesejados e a ocorrência foi avaliada positivamente. Vale ressaltar que a sonolência, embora seja normalmente considerada um efeito indesejado, pode ter ocorrência interessante/desejável em pacientes que apresentam problemas de sono, como no caso daqueles com fibromialgia. Ainda, vale ressaltar que embora o THC seja visto como “vilão” entre os canabinoides, o perfil de segurança observado foi bastante interessante e o potencial de usos terapêuticos desse composto não se limita à fibromialgia. Independente disso, é sempre importante lembrar que qualquer substância utilizada pode ter efeitos indesejados potenciais, sejam elas derivadas de plantas ou não, seja a planta a Cannabis ou não. O uso de fármacos deve sempre deve ser feito de forma responsável.
Limitações e perspectivas
É sempre importante avaliar criticamente os estudos e buscar pontos que poderiam melhorar e, consequentemente, produzir evidências mais fortes quanto à aplicabilidade do tratamento avaliado. Os resultados do estudo não podem ser generalizadas a todas as situações pela presença de alguns fatores que reduzem o nível da evidência encontrada:
- O número reduzido de participantes avaliadas (n=17) pode limitar a validade dos resultados observados;
- Embora a incidência da fibromialgia seja maior em mulheres, todas as participantes do estudo foram exclusivamente mulheres. O tratamento pode ter um perfil diferenciado de ação em homens e, por isso, seria interessante a presença masculina na amostra avaliada;
- O tratamento limitado a 2 meses, sem ser possível analisar o impacto crônico: acontece tolerância ao efeito do THC? É necessário reajustar dose durante o tratamento? O perfil de efeitos indesejados muda com o tratamento crônico? Essas perguntas ainda precisam de respostas.
Entendendo as limitações do estudo, é importante perceber que os resultados encontrados são encorajadores, especialmente considerando o manejo terapêutico de uma doença que conta com poucas opções efetivas atualmente. Ainda, esses resultados servirão como base para novos estudos clínicos voltados à expansão da análise para um maior número de participantes e em contextos mais diversificado (quanto ao gênero, particularidades genéticas populacionais ao avaliar populações de locais diferentes, etc.). Com mais tempo e pesquisa, vai ser possível delinear com clareza as evidências clínicas que relacionam o uso de canabinoides com o tratamento da fibromialgia. A participação brasileira na construção de evidências clínicas quanto ao potencial terapêutico de canabinoides vem ganhando destaque recentemente, especialmente frente às medidas que facilitam o uso de canabinoides no contexto medicinal e a pesquisa com esses compostos no país.
O estudo completo pode ser acessado aqui.