Temos arsenal terapêutico disponível para combater a varíola dos macacos?

Postado por: Lucas Gazarini

A varíola dos macacos (“monkeypox“) emergiu como uma nova doença de interesse global ao longo de 2022. “Nova doença de interesse“, porque ela definitvamente não é uma “doença nova“, já que foi identificada em macacos em 1958. Ela tem caráter zoonótico, com possibilidade de transmissão entre humanos e outros animais vertebrados. Sua transmissão é considerada endêmica em alguns países africanos, especialmente os menos desenvolvidos, que enfrentam casos e surtos desde sua descoberta. Não é inédito, na história, que uma doença comum em países subdesenvolvidos não receba grandes atenções do resto do mundo. Até se tornar uma questão mundial, é claro.

 

A varíola dos macacos ao longo do tempo

Essa infecção é causada por um ortopoxvírus associado aos macacos (embora possa infectar vários outros animais). Sua ocorrência é bastante comum na República Democrática do Congo, onde foi caracterizada pela primeira vez em humanos, em 1970. Desde então, novos casos tiveram a tendência a se manter circunscritos na região Oeste e Central da África, com poucos relatos de infecções “importadas” para outros locais. No total, 10 surtos foram documentados em países africanos e apenas 4 no resto do mundo. Nesses casos fora da África, surtos ocasionais tiveram relevância muito pequena e geralmente foram autocontidos. Por isso, a varíola dos macacos é considerada uma doença “rara”.

Mesmo nos países de ocorrência endêmica, os casos apresentaram uma tendência de escalonamento nos últimos 20 anos, indicando mudanças epidemiológicas. Até o perfil de mortalidade passou por mudanças: com uma totalidade de mortes relatadas em crianças com menos de 10 anos até os anos 2000, menos de 40% das mortes que aconteceram nos últimos 20 anos aconteceu nessa faixa etária. Vários fatores possíveis podem contribuir como aumento de casos, incluindo aspectos gerais como mudanças mundiais, com aumento no trânsito de pessoas, aumento na pobreza/desigualdade e dificuldade no acesso a serviços de saúde e desmatamento crescente, que aumenta o contato de humanos com a fauna nativa e reservatórios da doença.

Outro fator parece ser relacionado à erradicação da varíola clássica (“smallpox“), que levou à descontinuação de campanhas vacinais amplas. Como os vírus causadores da vaírola clássica e varíola dos macacos compartilham várias semelhanças estruturais, a vacinação usual contra varíola parece conferir 85% de imunidade contra a varíola dos macacos. A redução da imunidade com o passar do tempo, associada aos movimentos antivacina e cobertura vacinal insuficiente contra varíola podem ser responsáveis pela maior susceptibilidade atual à doença. Por isso, existe uma dificuldade na obtenção de vacinas, já que elas tiveram produção reduzida após a erradicação da varíola. Embora existam esforços para a aquisição de doses da vacina, a vacinação em massa não deve ser realizada, havendo priorização de pessoas expostas a pacientes contaminados e profissionais da saúde.

 

Tratamento antiviral para varíola dos macacos: em qual página estamos?

Embalagem do medicamento TPOXXX (tecovirimat), comercializado nos EUA.

TPOXXX® (tecovirimat), medicamento antiviral disponível nos EUA.(Créditos da imagem: SIGA Technologies Inc.)

Recentemente, foi anunciada a chegada de um medicamento anti-varíola dos macacos no país. O antiviral se chama ST-246, ou Tecovirimat (TPOXXX®), produzido pela SIGA Technologies Inc. Atualmente, existem 11 estudos clínicos registrados na plataforma ClinicalTrials.gov, mas apenas 2 deles avaliam a droga no contexto da varíola dos macacos. Em contexto pré-clínico, o fármaco se mostrou ativo contra diferentes ortopoxvírus, incluindo a varíola clássica e variantes de macacos, camelo, camundongos, gado, etc. A ação antiviral se dá pela inibição da proteína VP37 do envelope viral, produzida por genes conservados em diversos ortopoxvírus. Esse alvo tem função crítica no envelopamento de novos vírus e saída da célula hospedeira. Portanto, o fármaco impede que as novas partículas virais deixem a célula infectada, rompendo o ciclo de proliferação viral.

O antiviral foi aprovado contra varíola clássica, pela Food and Drug Administration em 2018, após publicação dos resultados do ensaio clínico na New England Journal of Medicine. Curiosamente, o tratamento só teve eficácia demonstrada em animais de laboratório (coelhos e primatas não-humanos), que foram inoculados com o vírus da varíola clássica ou varíola dos macacos. Animais tratados com o antiviral apresentaram mortalidade reduzida, com efeitos melhores quanto antes fosse iniciado o tratamento. As doses e concentrações plasmáticas obtidas nesses animais foram transpostas para o contexto humano, para avaliar a sua segurança e tolerabilidade (NCT02474589). De fato, não houve incidência de toxicidade ou efeitos indesejados importantes com o regime terapêutico de 600 mg da droga por via oral, a cada 12h, ao longo de 14 dias.

 

Particularidades no processo de desenvolvimento da droga e aprovação nos EUA

Quem acompanha as postagens desse site já deve ter percebido algumas “limitações” nos estudos e processo de aprovação do tecovirimat.

A aprovação do fármaco, para uso humano, se deu com base em estudos animais, o que foge do padrão. O motivo é “nobre“: existem legislações norte americanas específicas (FDA’s Animal Rule) que permitem a aprovação de fármacos com base em estudos animais bem delineados em situações na qual seria antiético realizar os testes apropriados em humanos. Como a varíola foi erradicada e não existia um contingente suficiente de infecção “natural” para conduzir testes em humanos (naquele momento), seria antiético expor pessoas saudáveis ao vírus.

Em maio deste ano, um estudo retrospectivo fez o relato de um caso humano tratado com o tecovirimat, com resolução sintomática mais rápida que outros pacientes que não usaram o antiviral. Obviamente, esse é um relato de caso com valor quase nulo quanto evidência científica para embasar o uso do fármaco. Talvez esse cenário mude agora, com um número crescente de humanos infectados, que possibilitaria a realização de estudos clínicos em grande escala. De qualquer forma, é importante ter em mente que a eficácia em humanos é teórica, com base em estudos animais, e sem comprovação clínica robusta.

Além disso, o fármaco foi desenvolvido em parceria com o governo americano (U.S. Department of Health and Human Services’ Biomedical Advanced Research and Development Authority – BARDA). Talvez você tenha certa dificuldade em entender a motivação norte americana para desenolver um antiviral contra varíola, que foi considerada erradicada desde 1980. Definitivamente, não é generosidade ou preocupação com os surtos africanos: a possibilidade de uso de poxvírus como armas biológicas aumentou o interesse na busca por tratamentos eficientes, em antecipação a possíveis guerras biológica ou bioterrorismo. Esse propósito foi deixado bastante claro no anúncio de aprovação da droga, inclusive.

 

Perspectivas de uso do tecovirimat

Até o momento, não existem tratamentos aprovados especificamente para a varíola dos macacos. Mesmo o tecovirimat, que é aprovado para uso nos EUA contra varíola, não tem indicação específica para a versão dos macacos (embora a União Europeia tenha sinalizado esse uso). Como não existe aprovação do fármaco junto à ANVISA, a chegada do medicamento ao Brasil é condicionada ao fornecimento pela Organização PanAmericana de Saúde (OPAS), levando em conta o estado de alerta mundial de saúde pública.

É importante deixar claro que, mesmo nos EUA, o fármaco só pode ser usado em contexto experimental (acesso expandido a novas drogas em investigação), considerando a incerteza sobre eficácia contra varíola dos macacos. Atualmente, a prioridade de tratamento indicada pelo Centers for Disease Control (CDC) inclui pessoas com formas graves da doença (com hemorragia, sepse ou encefalite) ou população em risco de desenvolver formas mais severas (imunocomprometidos, crianças, gestantes e lactantes).

 

Diante dessas limitações, fica claro que o cuidado não deve ser diminuído na perspectiva de já haver vacinas e tratamentos. As vacinas são escassas e o tratamento não é comprovadamente eficiente. Mais uma vez, a história ensina que um problema de saúde em qualquer lugar do mundo pode se tornar um problema no mundo todo.

Comentários

  1. Boa tarde!
    Existe algum fitoterápico para o tratamento da “Varíola do Macaco”?
    Desde já agradeço.
    VALDEMAR BAUSTARK

  2. Lucas Gazarini disse:

    Oi, Valdemar. Infelizmente, a resposta é não, ao menos até agora. Com o aumento nos casos de MPox no mundo, vários estudos passaram a avaliar o potencial antiviral de uma série de compostos químicos, inclusive aqueles derivados de plantas. Contudo, isso costuma levar tempo, então os frutos podem ser colhidos só daqui alguns anos.

    Vários fitoterápicos têm uso no controle da dor e febre. Mas como essa ação farmacológica nem sempre é bem conhecida, é mais seguro fazer o uso de medicamentos sintéticos, que não representem riscos aumentados de sangramento (dipirona e paracetamol), em casos suspeitos de MPox.

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