Quem cura, lucra?
Em 2018, a Goldman Sachs, instituição financeira que faz consultorias de investimentos, divulgou o relatório “The genome revolution” (A revolução genômica, em tradução livre). Em meio a explicações sobre potencial revolucionário de cura de doenças com terapias genéticas, surge a frase controversa: “Curar pacientes é um modelo sustentável de negócios?“.
Obviamente, isso repercutiu bastante negativamente na mídia (veja aqui, aqui e aqui). Até mesmo uma versão “pasteurizada” do relatório foi publicada em vídeo, apenas trazendo informações sobre a revolução genética mencionada.
O “risco” da cura
Vamos começar pelo óbvio: a indústria farmacêutica – assim como qualquer outra – não sobrevive sem dinheiro ou lucro, então deixemos esse ponto de lado. Claramente, o tratamento paliativo de doenças crônicas causa uma movimentação financeira maior que a cura dessas doenças. Também óbvio é o fato de que o potencial de lucro é um motor importante para a inovação: novas estratégias terapêuticas não seriam buscadas com tanto afinco e/ou eficiência se não houvesse potencial comercial para, no mínimo, sustentar as pesquisas de inovação e gerar algum lucro.
Segundo o relatório, o investimento em novas tecnologias genéticas que permitissem a cura de doenças ou otimização no combate a infecções crônicas e câncer poderia “sair pela culatra”, já que o benefício seria restrito a poucas pessoas e, em alguns casos, com a “venda única” do tratamento. Houve, inclusive, menção do caso da Gilead quanto ao tratamento e eliminação do vírus da Hepatite C: por ser uma opção muito eficiente, com taxas de cura que excedem 90%, o sucesso inicial das vendas seria seu próprio algoz, já que a “quantidade de pacientes que necessitam de tratamento reduziria”, até por haver menos portadores passíveis de perpetuar o vírus. De fato, as vendas desse tratamento reduziram em mais de 3 vezes em 3 anos.
Um exemplo real
No Brasil, foram aprovadas terapias gênicas para um tipo de cegueira congênita e a atrofia muscular espinal (AME). O Zolgensma®, comercializado pela Novartis, é o medicamento usado para AME, permitindo a cura ou melhora significativa quando utilizado em crianças, em dose única. O custo? Mais de 2 milhões de dólares por dose (aproximadamente U$ 2,1 mi nos EUA e R$2,8 mi no Brasil). Embora a tecnologia utilizada seja altamente complexa e justifique – ao menos em parte – o valor do tratamento, é possível que esse custo também reflita um “menor alcance” da terapia, já que essa condição genética não é tão comum. Para pais de crianças com AME, o tratamento é mandatório e urgente, embora nem sempre alcançavel.
Para a indústria, o universo de pacientes tratáveis (e “curáveis”) para essas condições certamente é menor que, digamos, aqueles que precisam de tratamento crônico para hipertensão ou depressão. A queda nas vendas do Zolgensma começou antes mesmo do final do primeiro ano de comercialização, levando ao fechamento de centros de terapia gênica da Novartis nos EUA. Talvez um sinal de que novas tecnologias terapêuticas possam exigir novas formas de avaliar riscos e planejar atividades, a longo prazo. Nesse sentido, até que ponto o desenvolvimento de tecnologias de terapia genética para determinada condição médica não abre portas para a extensão para outras doenças? Quanto do gasto no desenvolvimento das primeiras terapias gênicas não seria eliminado nos projetos seguintes? A longo prazo, a diversificação de alvos voltados à terapia gênica não seria muito mais rentável que o desenvolvimento inicial de uma terapia inovadora?
Lucro como termômetro de sucesso
Além disso, o que mais chocou na posição da financeira é a análise puramente fria sobre a baixa viabilidade de investir em terapias curativas, especialmente considerando aspectos bioéticos. A possibilidade de curar uma doença não deveria ser questionada. Ela poderia, no máximo, ser negociada quanto a maneiras de aumentar sua viabilidade. Como mencionado, a pesquisa & desenvolvimento não sobrevive de caridade. Mas o investimento em projetos inovadores de novas terapias também é pautado em interesses públicos e particulares, sejam de órgãos/empresas/fundos interessados no manejo de uma condição ou mesmo governos e entidades de saúde.
Novos modelos de financiamento e investimento nessa área são necessários? Provavelmente. Mas a possibilidade de cura de doenças que sequer tem alguma opção terapêutica paliativa deveria gerar entusiasmo e levar a pensar em aspectos não tocados antes, como impacto social e humano.
Não surpreende, mas gera desânimo.