PrEP sob demanda = 2+1+1

Postado por: Lucas Gazarini

Desde o uso do “coquetel” anti-HIV, muita coisa mudou. É impossível não se surpreender com a evolução dos tratamentos disponíveis. O uso de apenas 2 antivirais em uma única tomada diária já é uma realidade. Mais recentemente, o tratamento ganhou uma versão otimizada, com a combinação dos agentes em um comprimido só.

A profilaxia farmacológica também avançou muito nos últimos anos, compondo uma vertente importante da prevenção combinada. Desde os anos 2000, alguns antirretrovirais já eram usados em protocolos de profilaxia pós-exposição (PEP). Esse uso foi adotado pensando no risco ocupacional (contaminação por acidentes no trabalho) ou casos específicos, como abuso sexual. A profilaxia pré-exposição (PrEP) surgiu mais tarde, como uma estratégia preventiva inovadora. A combinação de tenofovir (300 mg) e emtricitabina (200 mg) (Truvada®) foi o primeiro medicamento aprovado para uso como PrEP nos Estados Unidos (2012). 

 

A questão da adesão ao regime diário de PrEP

A imagem mostra a apresentação do Truvada®, produzido no Brasil e fornecido gratuitamente pelo SUS.

Truvada®, produzido no Brasil e fornecido gratuitamente pelo SUS.

No Brasil, a PrEP chegou em 2017. Por aqui, ela é oferecida gratuitamente, via SUS, desde 2018. Os impactos positivos dessa estratégia são claros na saúde pública, associados à prevenção de novos casos de infecções por HIV.

Inicialmente, era comum ouvir recomendações “alarmantes” sobre a necessidade de uma adesão diária rigorosa para garantir a proteção. Obviamente, essas recomendações eram baseadas em estudos que só avaliaram o uso da PrEP em uso diário e bastante rígido. Alguns desses estudos, inclusive, mostravam certa variação na eficácia de prevenção, um fator atribuído à adesão heterogênea ao tratamento.

Para qualquer tipo de tratamento, a adesão ao regime terapêutico pode ser um problema. A falta de rigor no uso de medicamentos é um problema sério em doenças crônicas, como a hipertensão e diabetes. Problemas na adesão de estratégias profiláticas também podem trazer consequências. O exemplo mais usual são gestações indesejadas com a adesão inadequada aos anticoncepcionais orais.

Isso não é diferente no caso da PrEP. A exposição “flutuante” aos antivirais poderia resultar em menor eficiência na prevenção ao HIV. Não à toa, novas opções de PrEP injetáveis, com duração ampla de 2 meses, poderiam revolucionar a prevenção da infecção. Mas mesmo antes dessas opções se tornarem disponíveis, estudos já avaliavam formas de “otimizar” o regime terapêutica da PrEP oral, trazendo vantagens aos usuários.

 

Demandas diferentes para pessoas diferentes

O uso da PrEP diária é preconizado para pessoas com um perfil de vulnerabilidade maior a infecções por HIV. Lembre-se: não existe “população de risco“, mas comportamentos de risco que podem estar presentes em várias populações diferentes. Isso inclui as pessoas que fazem sexo sem preservativo frequentemente, que recorrem ao uso repetido de PEP, que tenham histórico frequente de infecções sexualmente transmissíveis (IST) ou “trabalhadores do sexo”. Nesses casos, o risco de exposição ao HIV pode ser constante, exigindo um regime profilático mais rígido.

Mas e aqueles casos nos quais o risco de infecção não é tão frequente? Imagine a situação de pessoas que só se expõem ao risco de infecção em eventos pontuais, como festas ou encontros pouco frequentes. Pessoas que tenham menor frequência sexual e que consigam “planejar” quando elas vão acontecer também se beneficiariam igualmente da PrEP diária?

A resposta óbvia para a pergunta é: claro que sim, levando em conta o risco menor de infecção. Mas pensando “friamente“, em termos econômicos e sociais, o regime diário de PrEP pode não ser o mais adequado para pessoas com esse perfil. Um regime mais flexível, de uso “pontual” em situações de risco aumentado, seria o ideal. O SUS certamente se beneficiaria, reduzindo o consumo de PrEP entre usuários que não precisariam fazer o uso diário, com impacto financeiro claro. O usuário também teria vantagens, por não precisar se expor, de forma desnecessária, ao medicamento. Pensando nisso, começaram os estudos da PrEP “sob demanda”.

 

A comprovação da eficácia de um regime flexível de PrEP

Em 2015, foi publicado o resultado do estudo IPERGAY (Intervention Préventive de l’Exposition aux Risques avec et pour les Gays). A pesquisa incluiu 400 homens que faziam sexo desprotegido com outros homens, com comportamento de risco estabelecido. Os participantes foram acompanhados ao longo de 2 anos, divididos em grupos que receberam placebo ou PrEP. Os participantes foram instruídos a usar os comprimidos de forma pontual, justamente “sob demanda”.

É importante esclarecer que esse regime é flexível: se houver apenas uma relação sexual, o usuário vai usar 2 comprimidos na véspera, e um comprimido diário, por dois dias que seguem. Ou seja, 2+1+1. Caso os dias com relações sexuais se estendam, o usuário deve fazer o uso diário de um comprimido enquanto houver relações sexuais, mantendo o tratamento por 2 dias após a última relação. Dessa forma, a PrEP sob demanda envolve o uso mínimo de 4 comprimidos em 3 dias, que podem se prolongar de acordo com o padrão de exposição ao risco, conforme ilustrado:

Um esquema ilustra os regimes de PrEP sob demanda, como descritos no parágrafo acima.

Regime flexível da PrEP sob demanda, de acordo com a exposição ao risco. O uso de um comprimido diário sempre deve se estender para 2 dias após a exposição ao evento de risco. (esquema adaptado da Organização Mundial da Saúde)

Voltando ao IPERGAY: os participantes usaram aproximadamente 15 comprimidos por mês, independente de PrEP ou placebo. Isso confirma a demanda reduzida de uso entre os participantes, que não precisaram usar o medicamento ao longo de todo o mês. Apenas 16 participantes foram infectados com HIV até o final do estudo, com 14 deles (87,5%) no grupo placebo.

Esse resultado representou uma redução de 86% no risco de infecção entre os que fizeram o uso da PrEP sob demanda. Além disso, o estudo confirmou que os 2 participantes infectados por HIV no grupo PrEP não seguiram o regime adequadamente e, portanto, não estavam sob os efeitos profiláticos. Isso reforça a premissa de que mesmo sendo um regime flexível de uso, a PrEP sob demanda requer comprometimento do usuário para assegurar sua eficácia.

 

PrEP diário vs. Sob demanda

No contexto de estudos clínicos, é comum comparar uma “nova terapia” com uma outra, sabidamente eficiente. Esse tipo de comparação recebe o nome de “teste de não-inferioridade“. O objetivo é avaliar se o novo tratamento é, no mínimo, igualmente eficaz ao tratamento já estabelecido (ou padrão).

O estudo PREVENIR, publicado em 2022, testou essa premissa. A pesquisa incluiu 3065 pessoas, em sua maioria homens que faziam sexo com homens, mas também incluiu mulheres trans que faziam sexo com homens. Os participantes podiam escolher o uso da PrEP diária (50,5%) ou sob demanda (49,5%), e foram acompanhados por até 3 anos. Ao final do estudo, apenas 6 participantes (0,19%) foram diagnosticados com HIV, 3 deles em cada um dos regimes de profilaxia. A incidência de soroconversão foi equivalente nos grupos, com 1 caso em 100 pessoas/ano. Em conjunto, os resultados reforçam a eficácia da PrEP sob demanda, que é igualmente eficiente quando comparada ao uso diário.

 

Impacto na prevenção à infecção por HIV

Desde 2019, a Organização Mundial da Saúde recomenda o protocolo da PrEP sob demanda. A recomendação foi respaldada em outros países, como os EUA, por recomendações do Centers for Disease Control and Prevention (CDC). No Brasil, o Ministério da Saúde passou a recomendar o uso da PrEP sob demanda no começo de 2023.

O uso da PrEP ainda é tema controverso em algumas populações, como homens e mulheres heterossexuais, ou mulheres trans. A maioria dos estudos não incluiu esses grupos entre os participantes, o que gera incertezas sobre a eficácia nesses grupos. Existe uma tendência de que esses grupos sejam incluídos mais frequentemente em novas pesquisas clínicas, conforme dados se acumulem. Mas é importante ter noção dessa limitação atual na busca pela melhor forma de prevenção.

Independente disso, o reconhecimento e recomendação da PrEP sob demanda aumenta a cobertura de estratégias profiláticas possíveis. Além disso, ela permite a escolha ao melhor regime de PrEP de acordo com os comportamentos e demandas individuais.

Comentários

  1. José Luiz disse:

    Boa noite! Se a prep sob demanda é eficaz tomando dois comprimidos duas horas antes, por que a comum só começa a fazer efeito sete dias depois?

  2. Lucas Gazarini disse:

    Oi José!
    A proposta de tomar 2 doses ao mesmo tempo é elevar a concentração dos antivirais na corrente sanguínea de forma rápida, garantindo um efeito antiviral protetor mais rapidamente. Ao usar uma dose por dia, esses níveis podem demorar mais pra serem atingidos.

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