Ecstasy vai se tornar medicamento?

Postado por: Lucas Gazarini

A psicofarmacologia passa por um momento muito particular de reavaliação do potencial terapêutico de substâncias psicodélicas. Vários compostos alucinógenos foram desenvolvidos com objetivos farmacêuticos. Essas substâncias acabaram perdendo o glamour com o tempo, especialmente por conta do estigma associado ao uso “recreativo”. O golpe final foi a inclusão de alucinógenos como drogas proibidas – no mesmo patamar da cocaína e heroína – durante a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (1972) da ONU.

Depois de décadas de tabu e menor apelo científico, alguns psicodélicos voltaram aos holofotes, com pesquisas voltadas à saúde mental. Para supresa de algumas (várias?) pessoas, o ecstasy pode ser a “droga alucinógena” mais próxima de ganhar status terapêutico formal.

 

De “droga de festa” a droga de consultório

Estrutura do MDMA (3,4-methilenodioximetamfetamina)

O ecstasy (MDMA; ou popularmente MD, bala, Michael Douglas, etc.) é um derivado anfetamínico com ação psicoestimulante. Algumas ações adicionais em vias serotoninérgicas fazem dele um estimulante “atípico”, que acompanha efeitos alucinógenos sutis.

Esse perfil misto tornou o ecstasy uma droga comumente associada a baladas (“droga de festa” é outro nome popular, um pouco mais velho). O efeito entactógeno (ou empatógeno, voltado às ações de conexão emocional, empatia, compreensão) é bastante explorado nesse contexto, mas teve pouco destaque na pesquisa clínica até recentemente.

Os primeiros estudos clínicos com MDMA em pacientes com Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT) foram aprovados em 2001, e realizados desde então com apoio da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (MAPS). Mais de 20 anos depois, os resultados de testes de fase 3 começaram a ser divulgados.

 

O estresse pós-traumático e a limitação terapêutica

O TEPT é um transtorno psiquiátrico que pode se desenvolver após a vivência de um evento traumático, como situações de violência, desastres, acidentes, etc. A memória do trauma é criada e mantida de forma disfuncional, trazendo prejuízos ao paciente. Respostas exageradas de ansiedade, medo e evitação são experimentadas o tempo todo, inclusive com revivência do trauma.

A severidade do transtorno depende vários fatores, como a natureza do trauma, que interage com componentes biológicos e psicossociais do indivíduo. Isso torna manejo clínico complexo, porque a condição é muito heterogênea, variando conforme a interação de fatores associados à vivênvia individualizada do trauma. O transtorno não tem cura, e conta essencialmente com o controle de sintomas, seja por meio medicamentoso e/ou psicoterápico. Com baixa eficácia de tratamento, é comum que pacientes com TEPT apresentem uso abusivo de drogas e maior predisposição a comportamentos suicidas.

 

Estudos clínicos com ecstasy para manejo do estresse pós-traumático

Um teste clínico de fase 3 foi publicado em 2021, com resultados encorajadores. O estudo acompanhou 90 pacientes com TEPT que receberam MDMA ou placebo. O uso era feito durante 3 sessões de psicoterapia de 8h, com intervalo de um mês entre elas. A severidade dos sintomas de TEPT foi avaliada ao início e 2 meses após o procedimento, usando uma escala psicométrica apropriada.

Em comparação ao placebo, o ecstasy foi duas vezes mais eficaz na redução da severidade do TEPT: a atenuação de sintomas foi mais frequente (80% vs. 50%) e uma parcela maior de pacientes não apresentavam mais critérios para o diagnóstico do transtorno (67% vs. 32%). Os resultados indicaram uma nova possibilidade terapêutica, mais eficiente que o arsenal atual e com perspectiva de “cura“.

Mesmo com resultados impressionantes, o estudo de 2021 recebeu críticas por avaliar uma amostra muito homogênea. Um teste clínico subsequente buscou sanar essas limitações, e os resultados foram publicados no mês passado. O protocolo experimental foi o mesmo, mas incluiu pacientes (n=104) com perfis mais heterogêneos quanto a características étnicas/raciais e natureza do trauma.

Novamente, a terapia assistida com MDMA resultou em redução de mais de 50% na severidade de sintomas do TEPT. O tratamento foi associado à menor resistência à atenuação sintomática (13% vs. 31%) e perda de critérios para diagnóstico clínico do transtorno (71% vs. 47%). Em ambos os estudos, os efeitos indesejados mais comuns foram rigidez muscular, náusea, perda de apetite e sudorese. Esses sintomas são, de fato, comumente associados ao uso de derivados anfetamínicos.

 

E qual é o impacto desses estudos “no mundo real”?

Em 2017, o FDA deu o carimbo de “Breakthrough Therapy Designation aos estudos clínicos com MDMA conduzidos pela MAPS. Essa medida representa o aval do órgão para priorizar a avaliação de resultados de forma mais ágil, considerando o potencial inovador e vantajoso do tratamento.

Há poucos meses, a Austrália se tornou o primeiro país a aprovar oficialmente o uso do ecstasy nesses casos. Com os estudos recentes, existe expectativa de que o FDA aprove o tratamento, que seria disponibilizado nos EUA. Em uma sinalização positiva, o FDA publicou diretrizes para o estudo clínico de psicodélicos recentemente. Isso pode indicar a abertura do órgão para avaliar resultados e regulamentar o uso dessas substâncias.

É importante perceber que o uso do MDMA foi avaliado em associação à psicoterapia. O uso isolado de ecstasy não tem evidências de benefícios para pacientes com TEPT. Pode parecer um detalhe, mas isso afasta esse tratamento do dilema atual sobre legalização do porte de drogas.

Mas fica como exercício mental: estamos em um contexto no qual o uso medicinal de canabinoides, derivados da maconha, ainda é um tabu. Que tipo de reação você espera quando a ANVISA passar a debater do uso terapêutico de ecstasy, num futuro próximo?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


Compartilhe:
Veja também