E o Oscar de desenvolvimento de medicamentos vai para…
…a Pfizer?
Depois da situação infame durante a cerimônia do Oscar de 2022, “não se fala em outra coisa“. Após ridicularizar a aparência de Jada Smith, que raspou a cabeça por uma condição de saúde que leva à queda de cabelo, Chris Rock foi surpreendido com um tapa de Will Smith, que não suportou o teor da “piada”.
O caso dividiu opiniões sobre se tratar de um evento autêntico ou “encenado”. Até especialistas em linguagem não verbal apontaram sinais de um evento ensaiado. Mais recentemente, o debate deu uma guinada em outra direção, um pouco inusitada (e talvez conspiratória): o tapa teria sido uma jogada de marketing encomendada para aumentar a visibilidade sobre o lançamento de um novo medicamento para o tratamento da condição de Jada Smith. E não, essa postagem não é uma pegadinha de primeiro de abril.
A alopecia areata e a busca por tratamentos
Jada Smith tem uma doença chamada de alopecia areata, uma condição autoimune que leva à queda dos cabelos em resposta à inflamação sistêmica. A doença afeta até 2% da população, mas com acomentimento em diferentes graus, desde a perda circunscrita de cabelos em algumas regiões do escalpo até uma perda mais maciça e uniforme dos cabelos e outros pêlos corporais.
Por apresentar componentes autoimunes e inflamatórios, a busca por novas alternativas terapêuticas para essa doença também poderia representar avanços para outras condições, como colite ulcerativa, doença de Crohn, dermatite atópica e esofagite eosinofílica. Por isso, farmacêuticas grandes, como a Britol Myers, têm voltado a atenção para o desenvolvimento de medicamentos para doenças inflamatórias. A Pfizer também tem ao menos 2 fármacos, em fases de desenvolvimento, apresentam potencial interessante nesses casos.
O ritlecitinib (ou PF-06651600), desenvolvido pela Pfizer, é um inibidor potente da isoforma JAK3 quinase, além da ação em 5 isoformas de quinases da família TEC. Estudos pré-clínicos demonstraram a ação desse fármaco no controle de respostas imunes, com ação marcante em reduzir a ativação de células NK e T CD8+, que poderiam se relacionar ao mecanismo fisiopatológico da perda de cabelo na alopecia areata. Alguns achados anedóticos sugeriam efeitos de inibidores da JAK quinase em reverter condições distróficas de unhas e cabelos, com estudos preliminares subsequentes que indicaram a eficácia de seis inibidores da JAK diferentes no controle da alopecia areata.
Em 2021, a Pfizer concluiu um estudo combinado de fases 2/3 (ALLEGRO-2b/3, NCT03732807), que demonstrou uma redução de 20% na perda de cabelo em pacientes com alopecia após o uso de ritlecitinib por 24 semanas. Desde então, outro estudo de fase 3 vem sendo conduzido, para avaliar a viabilidade de tratamentos mais longos, por até 36 meses (ALLEGRO-LT, NCT04006457), já que a alopecia é uma condição crônica. Existem mais de 30 estudos clínicos registrados com esse fármaco, incluindo a avaliação da sua eficácia e segurança em condições como doença de Crohn e vitiligo.
Outro exemplo é o do etrasimod, um fármaco que modula receptores de esfingosina-1-fosfato (S1P). Essa substância foi desenvolvida pela Arena Pharmaceuticals, que foi adquirida pela Pfizer em março de 2022. Já existem 18 estudos clínicos que avaliam a eficácia e segurança do fármaco para várias condições inflamatórias, ao longo dos últimos anos. Recentemente, a Pfizer anunciou resultados positivos sobre seus estudos de fase 3 com o etrasimod para casos de colite ulcerativa, após uso crônico por 12 ou 52 semanas (respectivamente: ELEVATE UC 12, NCT03996369; ELEVATE UC 52, NCT03945188). Os resultados incluíram remissão clínica e alívio sintomático, mas ainda não foram divulgados em detalhes. Embora esses resultados sejam relacionados à colite ulcerativa, a eficácia demonstrada poderia ser hipotetizada para outras condições inflamatórias, como a alopecia areata. De fato, a Arena Pharmaceuticals iniciou, há 2 anos, o recrutamento de participantes para um estudo clínico de fase 2 para avaliar o potencial desse fármaco em casos de alopecia.
Entenda o que levou à teoria do “marketing encomendado”
Em resumo: a Pfizer teria “financiado” toda a situação da zombaria à alopecia e tapa como forma de aumentar a visibilidade à doença, já que existe um medicamento dessa farmacêutica, em fases avançadas de teste, que poderia ser usado nesses casos. De fato, as buscas pelo termo “alopecia” tiveram um pico nessa semana, nunca alcançado nos últimos 5 anos, mas essa simples associação de fatos não implica em uma causalidade.
Um dos argumentos favoráveis à teoria é que a Pfizer se tornou uma patrocinadora da cerimônia do Oscar em 2022. Contudo, essa ação teve um interesse simbólico em ovacionar o retorno das atividades presenciais após momentos críticos da pandemia por COVID-19, até como uma forma de reforçar os resultados positivos obtidos com a vacinação ampla. Nesse sentido, o patrocínio também aconteceu pela BioNTech, parceira da Pfizer no desenvolvimento da vacina contra a COVID-19 (Comirnaty®).
Outro argumento é que a Pfizer tem drogas em desenvolvimento para alopecia e isso “comprovaria” o envolvimento no ocorrido. Obviamente, a Pfizer tem interesse em desenvolver tratamentos para a alopecia, e isso é inegável. O anúncio público dos resultados do ritlecitinib em casos de alopecia aconteceu em agosto de 2021, muito antes do Oscar. Mas o que gerou certo alarde foram os anúncios sobre a eficácia do etrasimod 4 dias antes do Oscar e 2 dias após o tapa, causando desconfiança quanto ao timing da divulgação. Inclusive a aquisição da Arena Pharmaceuticals aconteceu em março de 2022, mês do Oscar. Mas lembre: o estudo com o etrasimod avaliou seu efeito em colite ulcerativa, não em alopecia. Uma possibilidade é que tudo se tratou de uma grande coincidência, já que anúncios sobre testes clínicos acontecem com certa frequência por grandes farmacêuticas.
É sempre importante lembrar que uma correlação (a divulgação dos resultados coincidir com o evento do Oscar, ou o patronício inédito nesse ano) não implica em causalidade (ou seja, que o tapa aconteceu por conta da divulgação do resultado, que o patrocínio aconteceu para divulgar a droga, ou vice-versa).
Por fim, ficou esclarecido que a conspiração teve início em grupos antivacinas, que buscam associações da “big pharma” com a promoção/criação de doenças e todo tipo de argumentos nesse sentido. A “colisão” do desenvolvimento do medicamento em fase avançada com a visibilidade levantada para a alopecia parece ser fruto do… acaso. Bem menos mirabolante (e interessante), mas provavelmente mais factível e simples, como propõe o princípio da navalha de Occam.