Canabidiol como alternativa para o burnout
Como 15 de Novembro será comemorado o dia mundial da Cannabis medicinal, próximo do dia Nacional da maconha medicinal (27), as postagens ao longo desse mês serão voltadas a essa temática.
O uso medicinal dos canabinoides é um assunto em alta e que passa por discussão em várias esferas, embora quase sempre esbarre em argumentos relacionados a “poucas evidências”. Um estudo clínico recente demonstrou o efeito do canabidiol (CBD), um fitocanabinoide não-psicotomimético (que não causa reações psicóticas) derivado da maconha (Cannabis spp.), na redução do estresse, esgotamento e reações de burnout em profissionais da saúde que atuam na linha de frente de combate contra a COVID-19. A pesquisa foi realizada no Brasil, incluindo médicos, enfermeiros e fisioterapeutas do Hospital Universitário da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (São Paulo) ao longo do segundo semestre de 2020 (período de uma onda de casos locais), e foi publicado em agosto deste ano, em um dos títulos da revista JAMA, de visibilidade mundial.
Durante a pandemia, os casos de transtornos mentais aumentaram em toda a população, incluindo ansiedade, depressão, insônia e transtorno do estresse pós-traumático. Os profissionais da saúde que atuam no combate à pandemia são especialmente vulneráveis ao impacto emocional, levando em conta a carga extenuante de trabalho frente a uma doença nova, superlotação de hospitais e leitos associada a condicções insuficientes de trabalho (falta de anestésicos, oxigênio e outros insumos para manejo dos pacientes), sensação de impotência durante as piores fases da pandemia e, como resultado direto, relação muito próxima com a morte. Todos esses fatores aumentaram muito a incidência de esgotamento e burnout nesses profissionais nos últimos anos.
Sobre o estudo clínico
Como existem evidências prévias da ação ansiolítica e antidepressiva do CBD tanto em animais de laboratório quanto em humanos, a proposta do estudo foi avaliar a eficácia e segurança desse canabinoide em uma população altamente sujeita ao estresse. O CBD purificado (99,6%) foi administrado de forma oral, em preparação oleosa (150 mg, 2x ao dia).
O estudo foi aberto e randomizado, com avaliadores cegos quanto aos grupos avaliados (simples-cego), conduzido ao longo de 4 semanas. No total, 118 profissionais participaram do estudo, recebendo, ou não, o tratamento com CBD. No entanto, todos eles receberam cuidados usuais (acompanhamento psicológico/psiquiátrico, motivacional, apoio no ambiente de trabalho e recomendações sobre exercícios físicos) como forma de controle de estresse.
Avaliação do impacto emocional e desfecho
Até completar os 28 dias do estudo, os participantes foram avaliados semanalmente com uma série de escalas psicométricas para determinação de níveis de esgotamento, ansiedade e depressão. Participantes que receberam o tratamento com CBD apresentaram níveis reduzidos de burnout (à partir da segunda semana), depressão e ansiedade (à partir da primeira semana). Ao final do estudo, o grupo tratado com CBD apresentou redução significativa na proporção de participantes que tinham sintomas suficientes para caracterizar um quadro clínico de depressão ou ansiedade.
Em geral, o perfil de efeitos indesejados ao CBD foi leve a moderado, sem diferenças significativas com o grupo controle. Contudo, cinco participantes tratados com CBD apresentaram reações indesejadas sérias, representando 8,4% do grupo (n=59). Entre esses casos, foram relatados 4 eventos de aumentos em enzimas hepáticas (6,8%): 1 caso crítico (o participante precisou descontinuar o tratamento) e 3 casos moderados (detectados apenas ao final do estudo); houve, ainda, um caso (1,7%) de farmacodermia (uma reação adversa cutânea grave a fármacos), que também levou o participante a sair do estudo. Em ambos os casos graves, houve recuperação completa após a descontinuação do tratamento.
Limitações e avaliação crítica
Embora os resultados sejam interessantes e reforcem o perfil ansiolítico e antidepressivo do canabidiol, algumas limitações do estudo são claras e não devem ser ignoradas. O fato do estudo não ser conduzido de forma multicêntrica, duplo-cega e controlada por placebo reduz a força da evidência. Isso é particularmente importante quando se considera a possibilidade de parte dos efeitos relatados serem explicados por efeito placebo ou até por sugestionamento dos participantes ao “forçar” melhoras ao longo das semanas, ao fazer as avaliações semanais (lembre: os participantes que receberam CBD estavam cientes do tratamento e isso é um viés importante).
Adicionalmente, algumas diferenças observadas podem ser consideradas sutis ou pequenas. No entanto, vale a pena lembrar que a população avaliada era composta por profissionais expostos a uma carga de estresse muito intensa, o que pode, invariavelmente, reduzir a magnitude do efeito terapêutico do composto. Algo parecido aconteceu, por exemplo, com a avaliação da eficácia da Coronavac, que foi avaliada em profissionais da saúde, muito mais expostos ao vírus da COVID-19 que a população geral. Provavelmente por isso, estudos mais recentes da Coronavac com a população geral (fase 4) apresentam eficácia maior que aqueles reportados com profisionais da saúde no Brasil (fase 3), realizado pelo Instituto Butantan.
Um outro ponto importante é quanto ao perfil de segurança, que sugere que, como qualquer outro fármaco, o uso de canabinoides requer cuidados (ser um derivado de planta não significa estar livre de efeitos indesejados!). A avaliação da função hepática, por exemplo, parece ser um deles, mesmo que o aumento em enzimas hepáticas tenha ocorrido em uma porcentagem pequena dos participantes. Ainda, como o estudo não avaliava quais outros fármacos os participantes utilizavam (de forma discriminada), não é possível determinar um possível perfil de interação e sobrecarga hepática resultante que pudesse explicar o aumento enzimático nesses casos. Outra questão frequentemente abordada é que o uso de canabinoides e extratos da Cannabis em preparações oleosas também pode demandar cuidados quanto aos níveis de triglicerídeos e colesterol nos pacientes, que podem aumentar.
Perspectivas no uso de canabinoides
Além das limitações apontadas, uma perspectiva interessante é a possibilidade de uso do canabidiol como adjuvante na prevenção e manejo do burnout, condições que contam com arsenal terapêutico atual limitado. Especialmente pensando em risco ocupacional e profissões altamente expostas ao estresse, essa perspectiva parece bastante promissora. Em geral, levando em conta o cenário do manejo farmacológico de transtornos psiquiátricos, que passa por um período longo sem grandes novidades e classes terapêuticas inovadoras, estudos como esse acabam aumentando as expectativas quanto ao potencial terapêutico dos canabinoides.
O estudo completo pode ser acessado aqui.