Antipsicótico inovador é aprovado

Postado por: Lucas Gazarini

O arsenal terapêutico para o tratamento da esquizofrenia ganhou um novo aliado. Há menos de um mês, o FDA aprovou o medicamento Cobenfy®, nos EUA. Não se trata só de um medicamento novo: ele também é inovador. Por apresentar um mecanismo de ação particular, o medicamento pode inaugurar uma nova classe de antipsicóticos modernos.

 

Problemas dos antipsicóticos atuais

A esquizofrenia é um transtorno mental de caráter crônico, que acomete o juízo e a percepção. A condição acompanha delírios e alucinações (sintomas positivos), afastamento social e embotamento afetivo (sintomas negativos), além de prejuízo cognitivo.

Embora existam vários antipsicóticos disponíveis, o tratamento da esquizofrenia ainda é bastante desafiador. A maioria dos antipsicóticos é muito mais eficiente em controlar os sintomas positivos, com pouca melhora – ou até mesmo piora – nos sintomas negativos e cognitivos. Ainda, cerca de 1/3 dos pacientes não apresentam melhora clínica, mesmo testando vários medicamentos diferentes.

Os efeitos colaterais são muito frequentes, dificultando a adesão ao tratamento (que, muitas vezes, é para a vida toda). Efeitos motores – como “parkinsonismo medicamentoso”, com tremores e dificuldade de movimento – são os mais comuns em fármacos mais antigos, como o haloperidol (Haldol®) e clorpromazina (Amplictil®). Alterações endócrinas, ganho de peso, desbalanço metabólico e sedação também são frequentes, mesmo com antipsicóticos mais novos, como clozapina (Leponex®) e risperidona (Risperidal®). Muitos desses efeitos têm relação direta com o mecanismo de ação desses fármacos.

Os antipsicóticos disponíveis bloqueiam receptores de dopamina, um neurotransmissor que tem envolvimento claro no transtorno. Obviamente, um transtorno complexo como a esquizofrenia envolve várias outras alterações neuroquímicas além das dopaminérgicas. Estudos apontam que a transmissão colinérgica também represente um componente importante do transtorno. Mesmo assim, nenhum dos antipsicóticos atuais explora mecanismos colinérgicos de forma central. Até agora.

 

Onde está a inovação?

O novo medicamento representa inovação justamente por ter ação antipsicótica mediada por mecanismos colinérgicos, que nunca foram protagonistas no manejo da esquizofrenia. O Cobenfy® é composto por dois fármacos: a xamomelina e o cloreto de tróspio.

Estrutura química da Xamomelina

Xamomelina, um agonista muscarínico.

A xamomelina é um agonista de receptores muscarínicos de acetilcolina, muito presentes no cérebro. Esses receptores também são importantes na “periferia”, controlando pressão arterial, frequência cardíaca, funções gastrintestinais etc. Embora a ativação desses receptores no cérebro seja responsável pelo efeito antipsicótico, sua ativação disseminada no corpo resultaria em muitos efeitos indesejados. É aí que entra o segundo fármaco.

 

Cloreto de tróspio, um antagonista muscarínico.

O cloreto de tróspio é um antagonista de receptores muscarínicos, impedindo sua ativação. Como ele não atravessa a barreira hematoencefálica, sua ação é restrita perifericamente. Esse perfil é ideal, porque ele impede as ações periféricas da xamomelina no corpo, reduzindo os efeitos colaterais que ela causaria. Como o tróspio não se acumula no cérebro, o efeito antipsicótico da xamomelina é preservado. É uma combinação elegante para reduzir os efeitos colaterais.

Os estudos clínicos que levaram à aprovação do medicamento foram conduzidos pela farmacêutica Bristol Myers Squibb, ao longo de mais de 6 anos.

 

Entenda as evidências clínicas

O estudo EMERGENT-3 (NCT04738123) foi decisivo para a aprovação do medicamento. O teste foi controlado por placebo, randomizado, cego e multicêntrico, desenho experimental com padrão ouro para geração de evidências em saúde.

Foram incluídas 256 pessoas com esquizofrenia, hospitalizadas em quadro psicótico agudo. Ao longo de 5 semanas, elas receberam xamomelina (100-125 mg) + cloreto de tróspio (20-30 mg) ou placebo, a cada 12h. Semanalmente, os participantes passaram por avaliações de sintomas psicóticos, com a Escala de Síndromes Negativa e Positiva (PANSS; Positive and Negative Syndrome Scale). Também foram aplicadas escalas gerais de melhora clínica, controle de sinais vitais e efeitos indesejados. Em comparação ao placebo, os principais resultados foram:

  • Maior alívio sintomático após 15 dias de tratamento, principalmente associado ao melhor controle de sintomas positivos (PANSS);
  • Maior proporção de pacientes com ao menos 30% de redução na severidade de sintomas, após 5 semanas (50,6% vs. 25,3% no placebo);
  • Melhora clínica geral, avaliada por melhor resposta ao tratamento e severidade sintomática;
  • Ausência de efeitos motores classicamente associados aos antipsicóticos convencionais;
  • Principais efeitos indesejados gastrintestinais, como náusea (19,2%), dispepsia (16%), vômito (16%) e constipação (12,8%);
  • Aumento da pressão arterial e frequência cardíaca em uma parcela pequena dos participantes, que pode sugerir cuidado no uso em pessoas hipertensas ou cardiopatas;
  • Poucos efeitos indesejados que levaram ao abandono do estudo clínico, similar ao grupo controle (6,4% vs. 5,5% no placebo).

Esses resultados foram publicados em maio na revista JAMA Psychiatry. Isso culminou na aprovação do medicamento pelo FDA no final de setembro.

 

Limitações

Embora os resultados sejam muito encorajadores, alguns pontos requerem atenção. Como a esquizofrenia é uma condição crônica, são necessários estudos a longo prazo, por muito mais que 5 semanas de tratamento. Esses estudos atestariam a segurança do medicamento usado cronicamente, além de avaliar possíveis mecanismos de tolerância a longo prazo. Novas fases do estudo – EMERGENT-4 e EMERGENT-5 – devem trazer respostas sobre o uso do medicamento por, pelo menos, 1 ano.

Também não foram conduzidos testes que comparam o Cobenfy® com outros antipsicóticos já aprovados. Esse tipo de avaliação permite comparar diretamente a eficácia entre o novo medicamento e uma droga “padrão”, garantindo a sua não-inferioridade. Também é possível confrontar o perfil de efeitos colaterais.

Por fim, o regime de uso a cada 12h pode ser um obstáculo na adesão ao tratamento. Novas formas farmacêuticas, de liberação controlada ao longo de 24h, podem contornar esse problema. Muito provavelmente, essa deve ser uma adaptação planejada para otimizar o regime terapêutico.

Contudo, todas essas limitações são comuns aos novos medicamentos. É importante acompanhar os novos estudos conduzidos a partir de agora, que devem adicionar detalhes de segurança e eficácia do medicamento.

 

Perspectivas

O Cobenfy® foi o primeiro antipsicótico aprovado sem mecanismo de ação dopaminérgico, abrindo novas possibilidades. É possível, por exemplo, que pacientes resistentes aos medicamentos atuais possam responder a esse novo mecanismo de ação. O perfil de efeitos colaterais também deve destoar dos classicamente observados com outros antipsicóticos. Isso permitiria direcionar o tratamento de pacientes de acordo com o perfil individual, expandindo o arsenal disponível para manejo da esquizofrenia.

A bula do medicamento já está disponível, apenas em inglês. Ainda não há previsão para a aprovação do medicamento no Brasil.

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