Anticonvulsivantes na gestação e o risco de autismo
A exposição a substâncias químicas durante a gestação é um tabu, e não é a toa. A interação materno-fetal permite a troca de várias substâncias, incluindo medicamentos usados pela mãe durante a gravidez.
Vários fármacos são associados a alterações no desenvolvimento fetal, incluindo antidepressivos, anti-hipertensivos e anticoagulantes. As principais consequências são relacionadas a malformações congênitas (alterações estruturais cardíacas, fendas palatinas, etc.) e impactos no desenvolvimento do sistema nervoso.
Alterações no neurodesenvolvimento podem resultar de efeitos “mais sutis“, que não podem ser necessariamente observados por alterações estruturais no cérebro. Mudanças no perfil de produção de neurotransmissores ou na conectividade das células nervosas são exemplos importantes. Essas modificações “microscópicas” podem alterar a forma como os neurônios se comunicam, trazendo consequências comportamentais associadas a transtornos neurológicos e psiquiátricos. Esse parece ser o caso do transtorno do espectro do autismo (TEA), que é alvo frequente de pesquisas recentes.
Autismo como transtorno do neurodesenvolvimento
O TEA é caracterizado por alterações comportamentais em 2 esferas. Os prejuízos de comunicação e interação social talvez sejam as alterações mais “famosas”. Elas podem variar de uma dificuldade de estabelecer relacionamentos e interpretar nuances de comunicação (expressão corporal, subjetividade da linguagem) até uma incapacidade completa de comunicação verbal e não-verbal. Já os comportamentos restritivos ou repetitivos se relacionam a condutas “estereotipadas” do transtorno. Novamente, esses sintomas podem variar desde hipersensibilidades sensoriais (especialmente a sons e luzes) até ações repetitivas (movimentos pendulares), aparentemente sem motivos.
O desenvolvimento nervoso começa durante a gestação e se estende para além dos 20 anos de idade, quando o cérebro termina seu amadurecimento. Todo esse período é crítico para a formação adequada do cérebro. Várias modificações no funcionamento do sistema nervoso já foram descritas em pessoas com TEA. Ao contrário do que pode se pensar, pessoas autistas podem ter um volume cerebral aumentado, com maior espessura do córtex cerebral. A interação entre neurônios (as sinapses) parece ser mais frequente, resultando em um cérebro “mais conectado“. Essa hiperconectividade nervosa, contudo, não é necessariamente vantajosa.
Eliminação de sinapses e o uso de medicamentos
A segunda metade da gestação é crítica para a sinaptogênese, quando a interação entre neurônios é estabelecida. Nesse período, algumas sinapses também se perdem. Algumas interações neuronais estabelecidas durante o desenvolvimento precisam ser desfeitas. Esse é o caso, por exemplo, de sinapses entre neurônios necessários para engatinhar: quando aprendemos a andar, essas interações não são mais necessárias. O processo de “poda sináptica” desfaz essas comunicações nervosas, e isso acontece durante toda a vida, se necessário. O funcionamento adequado do cérebro depende do balanço adequado entre a formação e a eliminação de sinapses.
Autistas parecem ter um prejuízo na eliminação de sinapses, mantendo interações nervosas ao longo do desenvolvimento. O padrão de conexão entre estruturas do cérebro é diferente nessas pessoas, o que pode resultar em comportamentos atípicos. A comunicação pode ter interpretações diferentes das esperadas entre pessoas sem autismo (“neurotípicas”). Estímulos sensoriais podem ter resultados “inesperados” entre os neurotípicos, como incômodo ou dor ao ouvir sons altos.
O TEA é uma condição multifatorial, com interação entre fatores ambientais e biológicos decisivos para seu desenvolvimento. Fatores genéticos são exemplos de aspectos biológicos, com vários genes já associados ao maior risco de autismo. Fatores ambientais incluem doenças maternas (crônicas e infectocontagiosas) e a exposição gestacional a substâncias, como drogas e medicamentos. Fármacos usados no tratamento da epilepsia estão entre os mais associados a alterações fetais, com efeitos teratogênicos (indução de malformações) bem descritos. Mais recentemente, esses medicamentos passaram a ser estudados como “teratógenos comportamentais“, pela associação do uso durante a gravidez com o risco aumentado de transtornos de neurodesenvolvimento nos filhos.
Antiepilépticoss em gestantes e o risco aumentado de autismo
O risco de malformações faz com que o tratamento com anticonvulsivantes seja frequentemente pausado durante a gestação. A primeira metade da gravidez é a fase mais crítica na formação dos órgãos, então não é incomum que o tratamento seja restabelecido depois desse período. Novos resultados publicados no final de março apontam os riscos do uso de agentes antiepilépticos na segunda metade da gestação.
O estudo acompanhou quase 4,3 milhões de gestações que aconteceram entre 2000 e 2018 nos EUA. Foram incluídas mulheres com ou sem a prescrição de topiramato, lamotrigina e ácido valpróico (valproato) durante a segunda metade da gravidez. Entre os filhos, quase 4,2 crianças foram avaliadas até os 8 anos de idade ou até o diagnóstico de TEA. A proposta era avaliar se a exposição aos medicamentos analisados aumentava o risco dos filhos desenvolverem TEA.
O estudo concluiu que:
- Quadros de epilepsia em gestantes aumentam a incidência de TEA nos filhos (4,2% entre mães com epilepsia vs. 1,9% entre todas as mães incluídas no estudo);
- Um maior risco de TEA nos filhos foi associado ao uso de todos os anticonvulsivantes (aumentado em 2,1x para lamotrigina e topiramato, e 3,7x para valproato);
- No caso da lamotrigina e topiramato, esse risco aumentado é melhor explicado pelo quadro de epilepsia das mães, já que aquelas que usaram os fármacos para outras condições (enxaqueca, perda de peso, transtorno bipolar) não tiveram o mesmo risco das mães com epilepsia;
- Entre mulheres com epilepsia, a incidência de TEA nos filhos foi maior entre as que usaram valproato (10,5% vs. 4,2% entre mães com epilepsia sem usar o fármaco), com risco 2,67 vezes maior;
- O risco no uso do valproato foi 4,3x maior em doses altas (>1000 mg/dia).
Como lidar com esses resultados no manejo da epilepsia em gestantes?
É importante deixar claro que o risco aumentado de TEA com o uso de valproato na gestação não é novidade. Alguns estudos anteriores descreveram esse efeito, inclusive para outros anticonvulsivantes (veja: 2013 | 2013 | 2015 | 2020 | 2022). Outros também associam esse tratamento com maior incidência de transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e problemas de aprendizado nos filhos. Mas o novo estudo teve impacto alto por incluir um número muito grande de gestantes/filhos e a comparação entre vários medicamentos.
No próprio estudo, ficou clara que a incidência de TEA em filhos de gestantes epilépticas é maior, por si só. As próprias crises epilépticas durante a gestação poderiam aumentar o risco de transtornos de neurodesenvolvimento no feto, por exemplo. Adicionalmente, existem fatores genéticos comuns no desenvolvimento de epilepsia e o TEA. Então mães com epilepsia poderiam ter mais chances de ter filhos com TEA, por uma questão de herança genética. Mas tudo isso ainda é especulativo.
O tratamento da epilepsia durante a gestação é um tabu. Idealmente, a descontinuação do tratamento seria indicada para reduzir o risco fetal. Mas em casos de epilepsias graves, interromper o tratamento pode expor a mãe – e consequentemente o feto – às crises não controladas. Portanto, a decisão entre manter ou não o tratamento deve envolver reflexão ética e do balanço entre riscos e benefícios. O Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas em Epilepsia (2022), elaborado pelo Ministério da Saúde, traz direcionamentos de condutas nesses casos.
O valproato, em especial, vem sendo associado a efeitos epigenéticos, alterando a expressão de genes. Esse impacto em fetos poderia justificar o efeito teratógeno comportamental, por alterar a produção de proteínas durante o desenvolvimento. Pode ser chover no molhado, mas fica cada vez mais claro que o valproato deve ser a última escolha na gestação.