A promessa do Molnupiravir no manejo da COVID-19
No início deste mês – quase 2 anos após a descoberta do “novo coronavírus” – foram anunciados resultados promissores do uso do antiviral Molnupiravir no manejo da progressão da COVID-19, com redução no número de hospitalizações e mortes. O anúncio foi feito à imprensa pela Farmacêutica Merck, em parceria com a Ridgeback Biotherapeutics, que são responsáveis pelo desenvolvimento do fármaco e testes clínicos com a substância.
Molnupiravir e o tratamento da COVID-19
O desenvolvimento do Molnupiravir, conhecido como MK-4482 ou EIDD-2801 no contexto experimental, não aconteceu exclusivamente nos anos de pandemia. Como consequência das epidemias virais mais frequentes, incluindo casos mais recentes de influenza, ebola e outros coronavírus, mais investimento passou a ser direcionado à descoberta de novos antivirais, inclusive contra vírus de RNA, como o caso do novo coronavírus. Ao infectar o hospedeiro, o RNA viral é replicado por ação da RNA-polimerase dependente de RNA (RpdR), uma enzima que permite a formação de novas fitas de RNA utilizando o próprio RNA como molde. Esse processo é necessário para a replicação e proliferação desses vírus, aumentando a carga viral, induzindo consequências patológicas das infecções e permitindo a transmissão entre hospedeiros.
Em 2013, a substância chamada de EIDD-1931 foi uma entre os candidatos encontrados numa busca ampla por fármacos com atividade antiviral contra vários vírus de RNA. Sua estrutura análoga ao ribonucleosídeo pirimidínico citidina permite a interação competitiva com a polimerase viral, impedindo seu funcionamento normal, induzindo a ocorrência de mutações que inviabilizam a replicação de material genético viral, cessando seu ciclo. Embora a EIDD-1931 parecesse promissora, seu perfil de toxicidade e baixa biodisponibilidade limitaram sua aplicação clínica.
Foi só 5 anos depois, em 2018, que essa limitação foi superada: o Molnupiravir foi sintetizado por meio da modificação estrutural da EIDD-1931, gerando um composto com perfil de segurança melhor, maior tolerabilidade e parâmetros cinéticos adequados à administração oral. O molnupiravir é um pró-fármaco, ou seja, é “inerte” e requer metabolização no organismo para ser convertido à sua forma ativa, o EIDD-1931.
Outros antivirais com ação inibidora na RpdR viral já existem e tem atividade anti-COVID-19 avaliada, com uso aprovado em alguns países, como os EUA. Esse é o caso do Remdesivir (desenvolvido contra Ebola) e Favipiravir (anti-influenza). Contudo, essas substâncias apresentam limitações importantes quanto à biodisponibilidade e vias de administração, incluindo o uso exclusivamente parenteral no caso do Remdesivir. A principal vantagem do Molnupiravir é a conveniência da administração oral com biodisponibilidade suficiente para um tratamento adequado.
Com o surgimento da COVID-19 no final de 2019, estudos clínicos para avaliar o potencial antiviral do Molnupiravir contra influenza, programados para início de 2020, tiveram o foco modificado para a infecção pelo novo coronavírus. Desde então, vários ensaios clínicos e pré-clínicos apresentaram resultados interessantes, incluindo na profilaxia, tratamento e prevenção de transmissão do vírus.
A eficácia do Molnupiravir contra a COVID-19
Um dos estudos mais recentes com o Molnupiravir tem resultados promissores mesmo antes de encerrar. O ensaio clínico MOVe-OUT (NCT04575597) é um estudo de fase 3, que tem como objetivo avaliar a eficácia do Molnupiravir no manejo de pacientes não-hospitalizados com COVID-19 sintomática, leve a moderada, e ao menos um fator de risco associado à pior progressão da doença (como obesidade, hipertensão e diabetes). A pesquisa é controlada, duplo-cega e randomizada, com alocação multicêntrica, realizada em mais de 170 países (incluindo o Brasil), considerado o padrão-ouro na geração de evidências concretas quanto a novas alternativas terapêuticas.
O estudo iniciou há um ano, com recrutamento de pacientes e comparação entre diferentes doses do antiviral (200, 400 e 800 mg) ou placebo administrados a cada 12 h, durante 5 dias. Embora a estimativa de término do estudo fosse maio/2022, uma etapa prevista de avaliação de resultados parciais indicou resultados surpreendentes: a análise preliminar de 775 pacientes demonstrou uma redução de 50% no risco de hospitalização nos pacientes tratados com o antiviral (7,3% vs. 14,1% no grupo placebo). Ainda, um menor risco de morte foi observado, com nenhuma morte reportada ao longo de 29 dias após o início do tratamento antiviral, ao contrário do que foi observado no grupo que recebeu placebo (8 mortes em 377 pacientes; 2,1%). A eficácia não foi influenciada pelo decurso de surgimento de sintomas, fatores de risco apresentados pelos pacientes ou diferentes variantes virais detectadas (gama, delta e mu).
A finalização do estudo e pedido de registro
Atualmente já foram recrutados 90% do número total de pacientes visados pela pesquisa (1550 de 1850 participantes). Contudo, por recomendação de um comitê independente de monitoração de dados e órgão americano de regristro de medicamentos, o U.S. Food and Drug Administration (FDA), foi recomendada a interrupção do recrutamento de novos pacientes e finalização antecipada do estudo, levando em conta os resultados positivos divulgados preliminarmente.
A Merck iniciou o pedido de registro para uso emergencial do Molnupiravir junto à FDA, com posição final esperada nas próximas semanas. Em antecipação, a Farmacêutica iniciou a produção do medicamento, com previsão de produção suficiente para 10 milhões de tratamentos até o final do ano e expansão na escala durante 2022.
Embora o lançamento de novos medicamentos seja associado ao alto custo de medicamentos com patente, a indústria firmou acordos voluntários de não-exclusividade com produtores de medicamentos genéricos, levando em conta o contexto da pandemia global. Essa iniciativa deve aumentar a disponibilidade do medicamento em mais de 100 países em desenvolvimento, uma vez aprovado o uso do Molnupiravir pelas agências de regulação desses locais.
Perspectivas do manejo farmacoterapêutico da COVID-19
Nas próximas semanas, o curso da COVID-19 pode mudar com a possível aprovação e início na distribuição do Molnupiravir em todo o mundo. O desenvolvimento de um antiviral eficaz contra a doença, de uso oral e limitado a 5 dias de tratamento e com perspectivas de custo menor e produção de genéricos deve impactar diretamente no quadro epidemiológico, talvez de forma mais drástica que as vacinas.
Outro estudo clínico em andamento, chamado de MOVe-AHEAD (NCT04939428), avalia o uso do antiviral na prevenção de transmissão da COVID-19 em pessoas que moram com alguma pessoa doente. Seus resultados ainda não foram divulgados, mas teriam o potencial de estabelecer protocolos profiláticos frente à exposição a pacientes doentes. Mais informações sobre o Molnupiravir podem ser acessadas nesta revisão.
O desenvolvimento deste fármaco acontece há mais de 8 anos, muito antes da pandemia atual se desenvolver. Esses resultados reforçam a importância do financiamento de ciência e tecnologia constantemente, e não voltado à solução específica de um problema atual. Aplicações de pesquisas podem levar anos até se tornarem concretos e, com o tempo recorde de desenvolvimento de vacinas para a COVID-19 e o exemplo do Molnupiravir, todos nós passaremos a ser testemunhas disso.