Compra de Viagra pelas Forças Armadas foi alvo de críticas duras
O título é meio esdrúxulo, mas eu garanto que o teor da notícia também é. Nessa semana, o Ministério da Defesa vem sendo pressionado sobre a aprovação da compra de mais de 35 mil comprimidos contendo 25 ou 50 mg de sildenafila (ou sildenafil). Em menos de um dia, a notícia repercutiu muito negativamente, ganhando destaque em vários veículos de comunicação, como UOL, Veja e Isto É Dinheiro.
O maior problema dessa notícia é que o sildenafil é mundialmente reconhecido como ViagraⓇ, medicamento usado no manejo da disfunção erétil (ou “impotência sexual“). De fato, a ação vasodilatadora do sildenafil – resultante da inibição da fosfodiesterase-5 presente em tecidos vasculares – o tornou reconhecido no final dos anos 90 pelo seu caráter inovador no manejo da disfunção erétil: ele foi o primeiro medicamento de uso oral para essas situações. Embora ele também tenha outros usos clínicos reconhecidos, inclusive o controle da hipertensão arterial pulmonar (HAP), seu uso na disfunção erétil é muito mais, digamos, “popular“.
Esse pode ter sido um ponto que “amplificou” o peso da notícia, porque a maioria das pessoas deve assumir o uso do sildenafil como exclusivo para disfunção erétil (o que não é verdade). A Marinha até emitiu nota, justificando a aquisição para o tratamento da HAP, um argumento farmacologicamente e mecanisticamente correto. Mesmo assim, esse é um daqueles casos em que o Diabo está nos detalhes…
Sildenafil: ViagraⓇ vs. RevatioⓇ
De fato, o sildenafil é usado em casos de disfunção erétil e HAP, com evidências clínicas em ambos os casos. A Pfizer – que desenvolveu o sildenafil e detinha monopólio sobre sua venda inicialmente – até criou duas preparações farmacêuticas diferentes com a mesma substância: o ViagraⓇ, usado em casos de disfunção erétil na forma de comprimidos com doses de 25, 50 ou 100 mg, e o RevatioⓇ, usado em casos de HAP na forma de comprimidos de 20 mg. No exterior, o RevatioⓇ ainda é vendido em outras formas farmacêuticas, como suspensão oral e solução injetável, para otimizar o uso hospitalar.
Pode parecer estranho um mesmo fármaco vendido com nomes comerciais diferentes por uma mesma indústria, como medicamentos de referência (ou “de marca”). Essa opção pode estar associada a dois fatores: (1) direcionar pacientes para um uso específico do fármaco. Ou seja, pacientes que querem/precisam usar sildenafil para controle da disfunção erétil – mesmo sem prescrição – conhecem o nome ViagraⓇ, até popularmente. Já os que usam para HAP podem nem saber que o RevatioⓇ tem o mesmo princípio ativo que o ViagraⓇ. O segundo fator é diretamente relacionado a isso: (2) separar o “estigma” do medicamento para “impotência sexual” do produto RevatioⓇ (veja mais sobre o machismo e o uso de medicamentos em outra postagem).
Em resumo: o mesmo fármaco está por trás dos dois medicamentos e alguns textos até lidam – de forma pouco acurada – com ambos como intercambiáveis. Mas a intercambialidade dos dois medicamentos não é correta, especialmente quando se leva em conta aspectos técnicos sobre o processo de utilização de evidências para o tratamento farmacológico e gestão pública na compra de medicamentos.
Uma questão de dose
A farmacologia clínica se baseia em evidências obtidas por estudos clínicos. Por isso, os usos terapêuticos diversos da sildenafila são sustentados por estudos distintos, que confirmaram sua eficácia e segurança em contextos diferentes. Um exemplo dessas diferenças é a dose: embora o ViagraⓇ tenha uso comum nas doses de 25 a 100 mg (estudos clínicos revisados aqui, aqui e aqui)., os estudos clínicos que sustentam o uso do sildenafil para HAP utilizam doses de 20 mg ou múltiplos dela. Isso pode ser confirmado por revisões sistemáticas de peso ou diretrizes clínicas internacionais atualizadas: em geral, o tratamento inicial recomendado é o de 20 mg a cada 8 h, podendo ser ajustado para, no máximo, 240 mg/dia (80 mg em três tomadas).
Nesse sentido, perceba que os comprimidos de 25 ou 50 mg adquiridos excedem a dose mínima/inicial utilizada, além de dificultarem a titulação da dose ideal em pacientes resistentes ao tratamento: mesmo que o paciente tenha que tomar 20, 40 ou 80 mg a cada 8 h, essa faixa de doses não seria obtida sem o fracionamento (“divisão”) dos comprimidos de sildenafil 25 ou 50 mg. E aí vem outro problema: o comprimido é revestido, situação que limita o fracionamento sob risco de impacto farmacocinético e na eficácia do tratamento.
Ou seja, a compra de comprimidos de 25 e 50 mg com justificativa de emprego para HAP é uma decisão incorreta em termos farmacotécnicos (fracionar comprimidos revestidos é errado) e que onera o sistema público (seja por usar doses maiores que as recomendadas ou por fracionar comprimidos e implicar em pior controle clínico e desperdício de insumos).
Responsabilidade pública na incorporação e compra de medicamentos no SUS
O uso de sildenafil para HAP consta em Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Hipertensão Arterial Pulmonar, publicado pelo Ministério da Saúde, em 2014. Em 2022, a CONITEC também divulgou um relatório técnico que recomenda a incorporação do sildenafil no SUS, no âmbito do tratamento da HAP. É importante ressaltar ambos os documentos trazem informações sobre os estudos clínicos que demonstraram a eficácia e segurança de protocolos de tratamento utilizando 20, 40 ou 80 mg/3x ao dia, como disposto anteriormente.
O sildenafil faz parte da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME 2022), que garante a sua compra e fornecimento pela rede pública. Contudo, esse texto é categórico ao listar os comprimidos de 20 mg como estratégia terapêutica para HAP, ao contrário das formas farmacêuticas com 25 ou 50 mg. A informação é embasada, inclusive, pelo protocolo clínico mencionado no começo desse parágrafo.
Por isso, a compra de comprimidos de 25 e 50 mg com justificativa de emprego para HAP também é incorreta em termos técnicos, e vai de encontro aos relatórios e pareceres técnicos que deliberam sobre a incorporação de medicamentos no SUS com base em evidências de eficácia, segurança e farmacoeconomia.
E então, o que resta para justificar o processo de compra?
Ainda surgiram justificativas de que a compra nas doses de 25 e 50 mg se relacionaram ao menor custo desses comprimidos em comparação ao de 20 mg. Realmente, a lista atual de preços máximos de medicamentos estipulados pela ANVISA reforçam essa diferença. No entanto, o processo de compra ainda passa por uma investigação do Ministério Público Federal sobre um suposto superfaturamento de até 143% no preços desses comprimidos, o que faria cair por terra o argumento econômico. Ainda, os genéricos e similares contendo sildenafil são disponíveis em várias doses, incluindo todas as mencionadas ao longo desse texto.
Uma questão, ainda em aberto, que poderia auxiliar na elucidação das motivações por trás dessa compra é: as Forças Armadas também solicitaram a compra de bosentana, cujo uso associado ao sildenafil é o preconizado pelo relatório da CONITEC? Se, de fato, a compra diz respeito ao uso em HAP, seria esperada a compra do outro fármaco comumente associado a essa terapia.
Nas entrelinhas…
No final, imagino que grande parte do alarde se deu pela maior parte da população sequer saber do uso do sildenafil para outros fins que não a disfunção erétil. De qualquer forma, o processo de compra nas doses inadequadas – assumindo a intenção de aquisição para tratamento da HAP – demonstra uma deficiência técnica grande no processo de decisão de compra de medicamentos, no mínimo.
Matéria simplesmente espetacular!! Parabéns pelo trabalho!!