Fluvoxamina não teve uso recomendado para COVID-19

Postado por: Lucas Gazarini

A possibilidade de uso da fluvoxamina para o manejo da COVID-19 ganhou força após a publicação de estudos clínicos ao longo do último ano. Mesmo assim, esse fármaco não teve uso recomendado pelo painel técnico do Instituto Nacional de Saúde norte-americano (National Institutes of Health, NIH) em suas diretrizes de manejo da COVID-19 em atualização recente. Você sabe o motivo?

A fluvoxamina (Luvox®) é um antidepressivo da classe dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), usada atualmente no controle de depressão e transtornos de ansiedade. Em animais de laboratório, a substância reduziu a liberação de citocinas, mediadores da resposta inflamatória. Ainda, a expressão de genes pró-inflamatórios foi reduzida em células endoteliais e macrófagos humanos, em ensaios in vitro. Contudo, os estudos clínicos disponíveis até o momento não firmam o uso humano adequado no controle da COVID-19.

 

Estudo STOP COVID (Estados Unidos)

Os resultados desse estudo foram publicados na Journal of American Medical Association (JAMA). O ensaio de fase 2 foi randomizado, duplo-cego, controlado por placebo e totalmente sem contato (remoto). Embora tenha sido finalizado em dezembro de 2020, resultados preliminares foram divulgados no mês anterior (NCT04342663).

Foram recrutados 152 pacientes positivos para COVID-19, não-hospitalizados, mas com quadro sintomático moderado a grave. O tratamento consistiu em placebo ou fluvoxamina (100 mg) duas vezes ao dia, por 15 dias.

A deterioração geral do quadro de saúde – caracterizada por redução da saturação de oxigênio para níveis inferiores a 92% e/ou incidência de dispneia grave e/ou internação por dispneia ou pneumoniafoi menos frequente no grupo tratado com fluvoxamina (0/80; 0%) quando comparado ao placebo (6/72; 8,3%).

Contudo, uma série de limitações reduzem o valor dos achados:

  • Número reduzido de participantes (80 e 72 pacientes em cada grupo de tratamento), sendo necessários estudos maiores para avaliar a eficácia de forma menos enviesada;
  • Pouco tempo de acompanhamento dos participantes (15 dias);
  • Baixa adesão dos participantes, já que aproximadamente 25% deles não cumpriram os 15 dias de tratamento;
  • O desenho experimental remoto dificulta o acompanhamento do tratamento adotado e a avaliação dos participantes. Isso reduz, em especial, a eficiência em definir o conceito de “deteriorização de saúde” com base nos critérios propostos, de maneira remota.

Por ser o primeiro estudo clínico publicado com a droga no manejo da COVID-19, ensaios maiores foram iniciados para avaliar a eficácia do tratamento. O estudo de fase 3 (STOP COVID 2) recrutou mais de 700 participantes, mas foi interrompido por questões éticas após a avaliação preliminar de dados e pouca possibilidade de eficácia no tratamento adotado (princípio da futilidade).

 

Estudo TOGETHER (Brasil)

O estudo vem sendo conduzido no Brasil, de forma randomizada, duplo-cega, controlada por placebo e multicêntrica em vários locais do país. A análise preliminar dos dados foi publicada na The Lancet Global Health em outubro de 2021, embora o estudo tenha finalização prevista para março de 2022 (NCT04727424).

Participaram 1497 pacientes positivos para COVID-19, não-hospitalizados, com sintomas há menos de 7 dias e comorbidades ou fatores de risco associados à pior progressão da doença. O tratamento também foi feito com placebo ou fluvoxamina (100 mg) duas vezes ao dia, ao longo de 10 dias.

Pacientes tratados com fluvoxamina apresentaram chance menor (79/741; 10,6%) de permanência em setores de emergência por mais de 6h ou internação até 28 dias após o início do tratamento quando comparados ao grupo que recebeu placebo (119/756; 15,7%). Contudo, não houve diferenças entre os grupos quando se avaliou, isoladamente, o risco de internação, bem como resolução de sintomas ou risco de mortalidade.

Algumas limitações sérias restringem o valor dos resultados obtidos:

  • Embora o risco de permanência na emergência por mais de 6h ou internação tenham sido reduzidos no grupo tratado com fluvoxamina, não houve redução no risco isolado de hospitalização. Ou seja, o primeiro dado se refere à chance menor de permanência em setores de emergência por mais de 6h, sem, necessariamente, ter relação direta com a possibilidade de internação. O critério de “permanência em setor de emergência por mais de 6hnão é tradicionalmente usado em estudos que avaliam risco de internação e/ou morte. Ainda, esse tempo pode ser muito variável de local a local, incluindo países diferentes (tempo de espera para atendimento, número de profissionais disponíveis, etc.), o que dificulta a aplicabilidade do conceito. Portanto, o achado mais importante do estudo não é relevante no sentido prático;
  • A adesão ao tratamento foi autorrelatada pelos participantes e, possivelmente, enviesada;
  • A adesão foi significativamente menor no grupo que recebeu fluvoxamina (74% vs. 86% no grupo placebo), limitando o significado dos resultados.

 

Então a fluvoxamina está descartada como opção para o tratamento da COVID-19?

Não necessariamente (mas leia e interprete isso com cautela). Embora os estudos maiores (STOP COVID 2 e TOGETHER) não tenham demonstrado qualquer eficácia que justifique o uso da droga no manejo da COVID-19, novos estudos ainda podem ser realizados e mudar esse entendimento. Lembrem: a ciência é dinâmica e nada está escrito em pedra. Mas é claro: quanto maiores e mais frequentes forem os estudos que acumulem evidências contra o uso da droga, menores são as chances disso mudar com um novo estudo.

Contudo, podemos afirmar que, atualmente, não existem evidências suficientes – ou fortes o bastante – para justificar o uso da fluvoxamina contra COVID-19, o que sustenta a posição adotada pelo NIH. A ausência de dados concretos que apontem para a eficácia da droga já são suficientes para desestimular o uso do medicamento de forma “compassiva” ou off-label.

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