Alterações combinadas na sinalização noradrenérgica, glicocorticoide e endocanabinoide podem gerar memórias traumáticas
Uma pesquisa recente indicou que alterações combinadas em vias de transmissão relacionadas com o estresse podem facilitar o desenvolvimento de memórias traumáticas. O estudo foi realizado em uma parceria entre pesquisadores da UFMS, UFPR e UFSC e foi publicado recentemente na revista Neuroscience, em uma edição especial em homenagem a Ivan Izquierdo, um dos maiores pesquisadores de memória do mundo.
Transtornos mentais e memórias de medo
Alguns trantornos de ansiedade e relacionados ao estresse podem ter memórias de eventos traumáticos como componente central em seu desenvolvimento. Esse é o caso do Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT), que acontece com uma parcela de pessoas expostas a situações extremas de medo, como violência urbana e doméstica, abuso sexual, acidentes, ataques terroristas e experiências de guerra.
Nesses casos, a memória de medo é formada de forma tão intensa e duradoura que os pacientes podem apresentar lembranças espontâneas (memórias intrusivas), revivência do trauma (“flashbacks“) e alterações importantes em comportamentos, como ansiedade, medo e evitação (esquiva). Contudo, é comum que esses comportamentos aconteçam mesmo em situações que não remetam (ou façam lembrar) ao evento traumático, supostamente por uma perda de detalhamento da memória formada durante o momento de estresse, um processo denominado generalização do medo.
Essa memória de medo generalizada interfere na qualidade de vida desses pacientes, já que eles passam a evitar uma série de situações cotidianas, inclusive aquelas sem qualquer relação com o evento traumático que desencadeou a doença. Estudos com esses pacientes têm demonstrado alterações em vários sistemas de neurotransmissores, que poderiam contribuir com o estabelecimento das memórias traumáticas disfuncionais associadas ao TEPT.
Por exemplo, foi observada uma sinalização noradrenérgica e glicocorticoide aumentada, que são substâncias associadas ao estresse. No sentido contrário, os níveis de substâncias que reduzem o medo, como os endocanabinoides, são menores. Mesmo que esses estudos sugiram que o desbalanço entre esses neurotransmissores e hormônios possa favorecer o desenvolvimento da doença, não existem estudos em humanos que possam comprovar essa teoria atualmente.
Como avaliar essa premissa em animais de laboratório?
Para investigar a interação entre essas vias de transmissão na formação de memórias de medo, foi utilizado um protocolo de condicionamento de medo ao contexto, no qual ratos de laboratório foram expostos a uma caixa de teste (contexto) onde receberam choques leves nas patas, formando uma memória aversiva que associa esses choques ao contexto onde eles aconteceram. Quando esses animais retornam ao mesmo local um dia depois dos choques, eles passam a expressar respostas de medo (congelamento, uma inibição na realização de movimentos voluntários), demonstrando a existência da memória de medo associada àquele local. Em geral, a expressão de medo é baixa, porque os choques aplicados são de intensidade bastante pequena.
A premissa do estudo foi associar doses diferentes de agentes que pudessem modular a atividade das vias de transmissão mencionadas anteriormente: adrenalina (que potencializa a via noradrenérgica), corticosterona (que ativa a via glicocorticoide) ou AM251 (que reduz a transmissão endocanabinoide). A hipótese era de que, ao simular o desbalanço neuroquímico observado em pacientes com TEPT, poderiam ser geradas memórias de medo muito intensas em animais de laboratório, com componentes parecidos com as memórias traumáticas comuns ao transtorno mental.
Memórias traumáticas induzidas em laboratório?
Os resultados foram bem interessantes. As doses maiores dos agentes utilizados, administrados logo após a formação da memória de medo, levaram à formação de uma memória mais intensa, com maior expressão de medo frente ao contexto posteriormente. Isso comprovou que, isoladamente, a hiperativação noradrenérgica ou glicocorticoide e hipofunção endocanabinoide podem gerar memórias de medo mais severas.
Mas talvez mais importante que isso foi que, ao combinar doses muito pequenas desses agentes, incapazes de alterar a formação da memória por si só, foi possível gerar uma memória de medo ainda mais intensa: além desses ratos apresentarem medo muito maior ao contexto onde foram aplicados os choques, eles também apresentavam medo generalizado, mesmo em ambientes que não foram associados ao estímulo estressante. Isso demonstra que pequenos desbalanços nessas vias de transmissão, mesmo que não grandes o suficiente para alterarem a formação da memória de medo por si só, podem atuar de forma sinérgica no desenvolvimento de memórias de medo generalizadas, induzindo um padrão de respostas comportamentais similar aos observados no TEPT. Um resumo gráfico dos resultados pode ser analisado abaixo:

Imagem do artigo, utilizada e adaptada com autorização dos autores. (1) Doses pequenas dos agentes utilizados não alteram a intensidade da memória ao contexto condicionado (onde foram aplicados os choques) ou a outros contextos (neutros); (2) A combinação de doses pequenas de adrenalina e corticosterona OU adrenalina e AM251 aumentam a intensidade da memória de medo ao contexto condicionado, assim como (3) a administração isolada de doses grandes de cada um deles; (4) A associação de doses pequenas dos três agentes não só aumenta a expressão de medo frente ao contexto onde foram aplicados os choques, mas também a contextos neutros, havendo expressão generalizada de respostas de defesa.
Perspectivas para o manejo de transtornos psiquiátricos
Embora o estudo seja focado na geração de uma memória traumática em ambiente controlado, os resultados permitem um entendimento mais aprofundado sobre mecanismos fisiopatológicos possivelmente relacionados ao surgimento de memórias disfuncionais, que são mais associadas a transtornos psiquiátricos. Atualmente, o tratamento do TEPT apresenta uma série de limitações, como baixa eficácia de fármacos no controle de sintomas e pouca perspectiva de cura frente ao tratamento. Estratégias terapêuticas futuras podem visar uma interferência combinada nessas vias de neurotransmissão buscando formas alternativas de alívio sintomático mais eficientes ou mesmo a atenuação da memória traumática, que poderia representar uma possibilidade real de cura.
Você pode acessar o artigo, na íntegra, neste link.