Depressão Pós-Parto e a era dos neuroesteroides
O manejo farmacológico da depressão pós-parto (DPP) ganhou uma nova opção: o FDA aprovou o uso oral de Zuranolona (Zurzuvae®) para esses casos. A Biogen e Sage Therapeutics – responsáveis pelo desenvolvimento do fármaco – comemoraram a inovação. A solicitação de registro de novo medicamento aconteceu em fevereiro, com aprovação no início deste mês. O trâmite rápido se deu pelo enquadramento em processos prioritários de avaliação, levando em conta as poucas opções terapêuticas para a DPP.
A limitação terapêutica na Depressão Pós-Parto
Episódios depressivos maiores são caracterizados pela presença persistente de humor deprimido e anedonia (perda de interesse ou prazer), acompanhando uma situação de sofrimento importante. Na DPP, é comum que as mulheres também experimentem sintomas severos de ansiedade e crises de pânico. Alguns quadros acompanham caraterísticas psicóticas, que podem aumentar o risco de infanticídio. Muitas vezes, o peso cultural e papel social atribuídos à maternidade agravam os sintomas e sentimento de culpa (“você não deveria ficar triste, você vai ter um filho, esse é o momento mais importante na vida de uma mulher”), piorando o prognóstico.
A DPP é classificada pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) como transtorno depressivo maior com início no periparto. Por isso, é natural pensar que seu surgimento acontece semanas ou meses após o parto (daí os termos “pós-parto” ou “puerperal“, usados popularmente). Contudo, mais da metade desses casos têm início durante a gestação (geralmente no terceiro trimestre), tornando o termo “periparto” mais adequado. Atualmente, o transtorno recebe atenção prioritária pelo sofrimento imposto às mulheres e pessoas em seu entorno, mesmo que sua incidência seja baixa (0,1%).
Por muito tempo, o tratamento disponível era exatamente o mesmo que para qualquer outro quadro depressivo: abordagens psicoterapêuticas e farmacológicas. A maior limitação dessa abordagem acontece nos casos mais graves, já que a psicoterapia pode não bastar para o controle adequado dos sintomas, ao passo que vários antidepressivos tradicionais representam riscos ao desenvolvimento fetal. Mesmo quando o uso desses fármacos não acontece durante a gestação (momento de maior risco para organogênese), o uso no puerpério pode impor riscos ao bebê, pela excreção de substâncias pelo leite materno. Por isso, o tratamento da depressão no periparto é um tabu, com impasses éticos (priorizar a saúde do bebê à da gestante?) e impacto real na qualidade de assistência prestada.
Uma primeira aposta: o caso da alopregnenolona
O desenvolvimento de fármacos direcionados para a DPP usou a premissa de flutuações hormonais observadas durante a gestação e parto: ao longo da gravidez, níveis crescentes de alopregnenolona se estabelecem, até uma queda abrupta próxima ao parto. Esse neuroesteroide modula a atividade cerebral, inclusive pela ativação de receptores inibitórios GABAA. O padrão de ativação desses receptores também flutua durante a gestação, o que sugeria a suplementação pós-parto com alopregnenolona como estratégia possível para atenuar os sintomas de DPP. Como a biodisponibilidade oral do hormônio é muito baixa e seu metabolismo é rápido, formulações para uso oral dificilmente seriam efetivas.
Em 2019, o FDA aprovou o primeiro medicamento com indicação para DPP, a Brexanolona (Zulresso®). O medicamento é uma formulação parenteral (injetável) de alopregnenolona que contorna as limitações farmacocinéticas pela administração oral. Com o uso, seriam “simulados” níveis plasmáticos do hormônio equivalentes aos observados no terceiro trimestre de gestação. Supostamente, isso permitiria um “desmame” gradual dos altos níveis desse hormônio após o parto, reduzindo o impacto emocional agravado pela menor ativação de GABAA. Mesmo com mecanismo inovador e uso direcionado à DPP, o medicamento acompanha uma série de limitações:
- Uso restrito a ambiente hospitalar, limitando tratamento domiciliar;
- Administração por infusão intravenosa contínua, ao longo de 60 h (!);
- Impossibilidade de uso antes do parto, inviabilizando aplicação em casos de DPP gestacional;
- Custo alto (aproximadamente U$ 34 mil por tratamento);
- O fármaco sequer chegou a ser aprovado para uso no Brasil.
Por isso, o desenvolvimento da Brexanolona provavelmente teve menor impacto no manejo da DPP do que imaginado. Seu maior impacto talvez seja o fato de ser o primeiro representante de uma nova classe de fármacos usados para a depressão, com ação neuroesteroide.
Um novo agente neuroesteroide
A Zuranolona é um análogo sintético da alopregnenolona, com modificações estruturais que garantem melhor perfil farmacocinético. Assim como o neuroesteroide endógeno, sua ação central parece ser associada à modulação alostérica de receptores GABAA. Com biodisponibilidade oral otimizada, o fármaco se tornou o primeiro medicamento oral aprovado para DPP. Dois estudos clínicos de fase 3 (randomizados, controlados e duplo-cegos) publicados até fevereiro deste ano embasaram a aprovação pelo FDA:
No primeiro deles (NCT02978326), mulheres (18 a 45 anos) com diagnóstico de DPP (n=153) usaram zuranolona oral (30 mg) ou placebo, diariamente, por 14 dias. O fármaco foi associado à remissão mais frequente de sintomas depressivos e ansiosos de forma rápida, desde o ínicio (dia 3) até o fim do protocolo (dia 15). Esses efeitos foram mantidos por até 45 dias após o início do tratamento (52,1% vs. 23,2% de remissão). Também houve atenuação de sintomas de insônia durante o estudo.
O segundo estudo (NCT03672175) adotou o mesmo desenho experimental, mas com um grupo maior de mulheres (n=581) e avaliação de uma dose menor da droga (20 mg). Novamente, o efeito antidepressivo e ansiolítico do fármaco foi evidenciado ao longo dos 14 dias de tratamento. Nesse estudo, ficou claro que apenas a dose maior (30 mg) é eficaz. Ainda, com o grupo experimental maior, a maioria dos efeitos ficaram restritos ao período de tratamento, sem efeitos prolongados, contrariando os achados anteriores. Contudo, o efeito ansiolítico foi mantido por mais de 100 dias após o tratamento em pacientes com sintomas ansiosos mais severos. Os efeitos indesejados mais comuns foram fadiga, tontura e dores de cabeça, com incidência baixa.
E agora?
Às vésperas da aprovação pelo FDA, um novo estudo foi publicado. Nesse teste (n=196), sintomas de depressão foram avaliados ao longo de 14 dias de tratamento com uma dose maior de zuranolona (50 mg) ou placebo. Uma redução na severidade dos sintomas depressivos foi demonstrada nos dias 3 (durante o tratamento), 15, 28 e 45 (após o tratamento). Uma impressão que fica, ao analisar os resultados recentes, é de que os primeiros estudos superestimaram a eficácia do fármaco. Os efeitos são muito mais “humildes” no estudo atual.
Agora, com o registro do medicamento e uso amplo pela população, estudos de “mundo real” (fase 4) devem elucidar a efetividade do tratamento em populações maiores e heterogêneas. A aprovação dessa substância traz otimismo para o desenvolvimento de novos antidepressivos, com mecanismos inovadores que possam quebrar o ciclo ações farmacológicas tradicionalmente (e exaustivamente) exploradas nessa categoria de fármacos. Além disso, a novidade direciona o tratamento farmacológico de sintomas historicamente subestimados, seja por se tratar de de sofrimento emocional em geral, no caso da depressão, mas principalmente direcionado às mulheres.